O Instagram, que há uma década era sinônimo de fotos impecáveis e feeds temáticos, passa por uma transformação silenciosa entre os usuários mais jovens. Cansados da pressão por uma imagem pública perfeita, membros da geração Z (nascidos entre 1997 e 2010) têm adotado uma estratégia inusitada: a criação de múltiplos perfis dentro da mesma rede social. Do Dix ao Daily, passando pelos Melhores Amigos (Close Friends ou CF, para os íntimos), essas contas paralelas funcionam como espaços de experimentação, descontração e, em alguns casos, fuga da vigilância familiar.
Tanto o Dix quanto o Daily são perfis criados pelos próprios usuários dentro do Instagram, mas identificados como tais por uma sinalização no nome da conta — geralmente incluindo as palavras “dix” ou “daily” na @ ou no nome de exibição.
Segundo especialistas, o fenômeno vai além de uma moda passageira. Ele reflete uma mudança estrutural na forma como os jovens enxergam sua presença online — e como lidam com a crescente complexidade das relações digitais. “Não se trata de falsidade, mas de uma autenticidade contextual”, explicou Angelica Mari, especialista em ciberpsicologia. “O perfil principal é a máscara social; os secundários são onde a sombra pode respirar”.
O especialista em redes sociais Alexandre Inagaki destacou que, embora parecidos, os diferentes tipos de perfil têm funções distintas. “O Dix funciona como um espaço de alta privacidade, criado justamente para escapar do julgamento familiar ou de conhecidos distantes. Festas, desabafos e momentos mais crus da vida vão parar ali. Já o Daily tem um caráter mais aberto, acessível a qualquer pessoa interessada nos temas abordados, mantendo porém uma atmosfera mais descontraída que o perfil principal”, detalhou.
Dix: refúgio dos conteúdos ‘proibidos’
Popularizado por volta de 2016, o Dix (pronuncia-se “díxis”) surgiu como resposta à necessidade de privacidade. Seu nome vem da expressão “para dixar” — uma gíria que significa “deixar” ou “postar” algo sem compromisso. Ao contrário do perfil principal, onde familiares, colegas de trabalho e conhecidos distantes acompanham a vida do usuário, o Dix é restrito a um círculo íntimo.
“É onde posto fotos de festa, memes ou até desabafos que nunca compartilharia no meu Instagram normal”, revelou Giovanna Lírio, estudante de medicina de 22 anos. A jovem descreveu sua conta paralela como “um diário sem filtro”. “Se quero postar uma foto esquisita ou mostrar alguma coisa que aconteceu no meu dia, vai pro Dix. No perfil principal é tudo mais pensado”.
Angelica Mari explicou que o Dix preenche uma lacuna importante: a necessidade de um espaço sem julgamento. “Muitos jovens não podem ser espontâneos no perfil principal porque ele é monitorado por pais, empregadores ou até professores. O Dix vira uma zona livre dessa vigilância”, afirmou.
Giovanna contou que seu Dix surgiu a partir de um perfil antigo no Instagram. “Meu Dix nasceu do meu Instagram antigo, que eu ‘limpei’ para recriar como um espaço alternativo”, explicou. Enquanto o perfil principal inclui familiares e até professores, o outro funciona como uma bolha mais controlada. “No Dix, eu sei exatamente quem está me acompanhando. Posso postar que estou ouvindo um funk, por exemplo, sem pensar duas vezes. As pessoas ali já me conhecem e não me julgam”.
Daily: Instagram como diário público
Enquanto o Dix é voltado para a privacidade, o Daily — abreviação de “diário” em inglês — segue a lógica oposta: é um perfil temático, muitas vezes aberto, usado para compartilhar fragmentos do cotidiano. Mais popular entre adolescentes de 14 a 18 anos — especialmente meninas —, ele costuma focar em hobbies, rotinas de beleza ou até reflexões pessoais.
“Uso meu Daily para falar de espiritualidade, séries que assisto ou dicas de skincare”, disse Maria Paula Carmona, 21, estudante de publicidade. “É diferente do Dix porque não é sobre privacidade, e sim sobre criar tipo uma comunidade com quem compartilha os mesmos interesses”.
Para Alexandre Inagaki, o Daily é uma evolução natural dos antigos blogs pessoais. “Antes, adolescentes tinham Tumblr ou Blogger para falar de assuntos nichados. Hoje, o Instagram absorveu essa demanda, mas com a pressão estética da plataforma. O Daily tira esse peso”.
Maria Paula relatou que, no início, seu perfil seguia o padrão mais comum. “Meu Dix começou como todos os outros – lugar para bumerangues e GIFs, longe dos olhos da família. Era até vergonhoso ter parentes seguindo.” Com o tempo, o conteúdo foi mudando. “Quando transformei em um diário, até eles passaram a acompanhar. Hoje, são meus amigos mais próximos que veem, e eu controlo os acessos – escolho quem vai ver essa parte da minha vida”, contou.
A diferença no tipo de engajamento entre as contas também chamou a atenção da estudante. “É muito maluco. Minha conta principal tem muito mais visualizações, mas o meu Daily tem muito mais interação”, disse. “Eu posso postar ‘acabei de sair da aula’ e as minhas amigas respondem: ‘ah, eu também’ ou ‘ainda estou indo pro trabalho’, sabe? É uma coisa muito natural. Parece que a gente está realmente conversando”.
Close Friends: lista VIP do Instagram
Para quem busca compartilhar conteúdos mais reservados sem criar um perfil paralelo, o Close Friends (CF) do Instagram oferece uma alternativa prática. Desde 2018, a função permite que usuários compartilhem Stories com uma lista restrita de contatos. Recentemente, o recurso passou a permitir também publicações no feed exclusivas para esse grupo seleto — um movimento que atende à crescente demanda por segmentação de público.
“Adicionar alguém ao Close Friends pode ser um sinal de intimidade ou até de interesse romântico”, observou Inagaki. “É uma forma não verbal de comunicar: ‘Você tem acesso a um lado meu que a maioria não vê’”.
Ainda assim, diferentemente do Dix e do Daily, o CF não garante um isolamento completo. “Se seu perfil principal é aberto, qualquer seguidor ainda pode ver suas postagens antigas no feed. O Dix é mais seguro para quem quer um controle maior sobre quem realmente tem acesso”, explicou Giovanna.
Mesmo perfis como o Daily, que tendem a ser mais abertos, muitas vezes combinam o uso do CF para criar camadas extras de privacidade. “No meu Daily, tenho uma lista de Melhores Amigos com menos de 30 pessoas. Lá, consigo falar sem me preocupar se estou bonita ou se o que digo será mal interpretado. É como se eu estivesse falando realmente com minhas amigas mais próximas”, contou Maria Paula.
Essa sobreposição de estratégias revela uma busca crescente por níveis variados de exposição — em que o mesmo usuário pode ter um perfil público, um Daily temático e um CF ultra-restrito. Para os especialistas, essa flexibilidade reflete a forma como a geração Z vem redefinindo os limites entre o público e o privado online.
Riscos e benefícios da identidade fragmentada
Apesar da liberdade proporcionada por esses perfis, especialistas alertam para riscos. “Quanto mais contas uma pessoa gerencia, maior a carga mental”, disse Angelica Mari. “Alguns jovens ficam ansiosos tentando manter coerência entre diferentes ‘eus’ digitais”.
A falta de fronteiras claras entre os perfis também pode gerar constrangimentos. “Já aconteceu de um familiar descobrir meu Dix e pedir para seguir. Fiquei em pânico”, relatou Giovanna. Maria Paula enfrentou dilemas semelhantes: “Tenho 300 seguidores no Daily. Às vezes penso: ‘Será que quero que todos vejam isso?’”.
Ainda assim, para muitos jovens, esses espaços representam liberdade. “Eu acho que a nossa geração se preocupa muito com a foto perfeita pro Instagram normal”, explicou Maria Paula. “Meu Daily virou um diário, onde posto as 600 fotos que eu não compartilharia no Instagram ‘oficial’ — aquele que pessoas fora do meu círculo social acompanham”.
Ela também destacou a diferença nas camadas de compartilhamento. “No meu perfil Daily eu tenho uma lista de Melhores Amigos, que são menos de 30 pessoas, onde mostro meu dia sem cortes. Não preciso ser interessante nem nada do tipo. É o meu espaço para ser eu mesma”, explicou.
Para os especialistas, quando bem utilizados, esses perfis alternativos podem ser ferramentas valiosas de autoexpressão e bem-estar digital. “Essa estratégia pode ajudar a organizar a vida digital de um indivíduo, desde que ele se mantenha fiel ao seu propósito original”, ponderou Angelica. “Por outro lado, quando mal administrados, esses múltiplos perfis podem acabar fragmentando ainda mais a identidade digital”.
Ela destacou que tudo depende da consciência do usuário. “O que observamos é uma busca por autenticidade contextual. Como já mencionei, não se trata de falsidade, mas sim de uma adaptação necessária às expectativas sociais que o ambiente digital impõe”.
Angelica também vê nesse comportamento uma sofisticação no uso das redes. “Os jovens estão desenvolvendo habilidades complexas para navegar entre diferentes contextos sociais digitais, mantendo aspectos distintos de sua personalidade em cada espaço”.
O futuro dos múltiplos perfis
Enquanto o Instagram tenta se adaptar às novas demandas por privacidade — como com o lançamento do “Instagram para adolescentes” — os jovens seguem desenvolvendo estratégias criativas para preservar sua autenticidade online. “As redes sociais estão sempre um passo atrás dos usuários”, observou Inagaki. “Primeiro vieram os Stories, em resposta ao Snapchat. Agora, a plataforma tenta acompanhar a explosão dos perfis secundários, mas os jovens já estão três jogadas à frente”.
Para Angelica Mari, o movimento é mais profundo que uma tendência. “Estamos testemunhando a evolução do gerenciamento de identidade online. Isso não é moda — é a nova realidade digital, onde cada pessoa pode ser múltipla em diferentes contextos”, afirmou.
Dix, Daily e Close Friends se consolidam como ferramentas de uma internet menos performática e mais autêntica. “As redes sociais são um dos poucos espaços que realmente controlamos em nossas vidas”, refletiu Maria Paula. “Por que não criar cantinhos digitais onde possamos ser nós mesmos?”
Outra tendência que acompanha esse movimento é o chamado “feed zero” — contas sem postagens no feed, que utilizam exclusivamente os Stories, muitas vezes restritos aos Melhores Amigos.
“Essa abordagem é muito comum e aproveita o melhor dos dois mundos”, explicou Inagaki. “A natureza dos Stories elimina a pressão por perfeição. Ninguém posta uma foto produzida ao acordar com os olhos cheios de remela no feed, mas nos Stories isso flui naturalmente”.
O especialista concluiu: “Muitos mantêm o feed zerado justamente para se libertar da obrigação de uma curadoria permanente. Os Stories acabam virando o espaço para algo mais espontâneo — especialmente quando são compartilhados apenas com um círculo íntimo”.