Pouco antes do meio-dia tocou o telefone cinza na saleta da revista Bild der Wissenschaft, em Stuttgart (sul da Alemanha Ocidental). Um colega da Folha contou, entusiasmado, que o Muro de Berlim caíra na noite anterior.
Soava, e era, inacreditável. Fazia meses que o governo alemão-oriental estava sob pressão da enxurrada de 200 mil fugitivos da ditadura do Partido Socialista da Unidade (SED, em alemão), que se bandeavam para o Ocidente pelas fronteiras da então Tcheco-Eslováquia e da Hungria.
A crise política já levara, três semanas antes, à queda do camarada Erich Honecker, que mandava na República Democrática Alemã (RDA) fazia 18 anos. Substituiu-o Egon Krenz, burocrata do SED tido por mais moderado.
No mês anterior, manifestações com centenas de milhares de dissidentes tinham tomado as ruas de Leipzig e Berlim Oriental. Palavra de ordem: “Nós somos o povo”, e não o partido que se gabava de guiá-lo.
Nada, porém, parecia capaz de tornar verossímil a ruína do Muro, símbolo maior da Guerra Fria erguido em 1961. Mais que isso, era impossível imaginar que, em menos de um ano, a Alemanha comunista estaria varrida do mapa.
De sala em sala na Redação, nenhum colega sabia da notícia monumental. Não havia internet, e o evento não figurava nos comportados diários alemães, cujo fechamento se dava por volta das 19h.
No Tagesschau, telejornal das 20h, noticiou-se apenas que o desvio por países vizinhos se tornara desnecessário. E ninguém, pelo visto, tinha assistido ao das 22h30, Tagesthemen, no qual aparecera de forma nebulosa que o SED tinha liberado viagens de alemães-orientais ao exterior.
Só no dia seguinte veríamos pela TV as cenas de júbilo em Berlim. Após horas de espera no posto de fronteira da Bornholmer Strasse, dezenas de milhares tinham conseguido passar para o lado ocidental por volta da meia-noite. No Portão de Brandemburgo, os mais atirados pulavam o Muro ou dançavam sobre ele.
O principal acontecimento do século 20, depois das duas guerras mundiais, resultara de uma comédia de erros. Ou uma tragédia, do ponto de vista da ditadura do SED e de sua polícia política, a Stasi.
O Politburo do partido havia decidido relaxar a proibição de viagens e conceder vistos para quem quisesse viajar. Mas permaneceria o controle das permissões pela Stasi.
Uma comissão encarregada de redigir a medida escreveu que ela entraria em vigor de imediato e que as permissões seriam concedidas em pouco tempo.
Ninguém se deu ao trabalho de ler direito o comunicado, que foi entregue por Krenz a Günter Schabowski, porta-voz que daria entrevista coletiva às 18h, sem alertá-lo de que a divulgação ocorreria só na manhã seguinte.
Schabowski fez um relato soporífero da reunião do Politburo e, mais para o final, leu o comunicado explosivo de modo burocrático.
Foi então bombardeado por perguntas dos repórteres de agências de notícias. Atordoado, deu respostas confusas e encerrou a coletiva sem esclarecer se seriam necessários vistos para alcançar Berlim Ocidental.
Os berlinenses do lado de lá do Muro concluíram que não e começaram a se aglomerar nos postos de passagem. O da Bornholmer Strasse, o mais acessível por transporte público, se encheu depressa. Após quatro horas de tensão, com mais de 10 mil pessoas à porta, o oficial de plantão liberou a passagem de todos.
Ali começou a ruir o Muro de Berlim. O terremoto geopolítico deflagrado pela fissura de 9 de novembro abriu um filão jornalístico que ainda duraria muitos meses.
A bolsa de aperfeiçoamento profissional obtida da Fundação Krupp só terminava em março de 1990. Veio então o convite de Otavio Frias Filho para estender a permanência na Alemanha por seis meses.
A proposta era assumir o posto de correspondente da Folha em Berlim, com a missão de cobrir a unificação inevitável.
Não foi fácil encontrar um apartamento na cidade que todos queriam visitar. Vagas para as filhas em pré-escola, nem pensar. Seções inteiras do Muro sumiam de uma semana para a outra.
Legiões de alemães-orientais e poloneses enchiam ruas e supermercados, arrebatando tudo que faltava nas economias planificadas: leite em pó, bananas, sabão para máquina de lavar, salgadinhos…
Os moradores bufavam, em especial contra caravanas de ciganos vindos do Leste.
Era fácil distinguir alemães-orientais nas ruas. Cobertos de jeans, tênis novos comprados com os 100 marcos de “Begrüssungsgeld” (dinheiro de boas-vindas), gestos comedidos, sem a desenvoltura afluente dos ocidentais. A aparência se alteraria logo, não tanto a atitude mental forjada em 40 anos de controle totalitário.
Pouco havia de atraente em ver um país, seu aparato repressivo e suas “empresas de propriedade popular” desfazerem-se em questão de meses. Burocratas comunistas e delatores da Stasi —quase todo mundo— multiplicavam rapapés para os alemães-ocidentais donos do dinheiro.
Correspondentes rumavam a cada dia para o centro de imprensa de Berlim Oriental, na mesma Mohrenstrasse em que Schabowski dera a fatídica entrevista coletiva. Telefones públicos conectados à rede ocidental foram instalados, mas as reportagens eram datilografadas e depois copiadas para fitas de telex, em qualquer língua, por funcionárias que não faziam ideia do que nelas se dizia.
Estrangeiros tinham de cruzar a fronteira em Checkpoint Charlie, se vindos de carro. De início, passaportes e vistos eram conferidos pelos guardas treinados para atirar em quem tentasse pular o Muro. Porta-malas abertos, o piso do veículo inspecionado por baixo com espelhos.
Bastaram semanas para o rigor desaparecer. Os guardas se limitavam a acenar de dentro das cabines para que os motoristas avançassem. Em 22 de junho, cobri a suspensão do Checkpoint Charlie em cerimônia dos aliados que formalmente ainda controlavam Berlim Ocidental (EUA, Reino Unido e França).
Em março ocorrera a primeira eleição livre desde a criação da RDA em 1949. Venceu a coalizão de centro-direita Aliança pela Alemanha, liderada pela Democracia Cristã (mesmo partido do chanceler ocidental, Helmut Kohl).
Lothar de Maizière torna-se premiê para negociar a adesão de seu país à RFA. Encarrega uma jovem cientista e militante da “Revolução Pacífica”, Angela Merkel, de organizar briefings para a imprensa. Ela seguiria carreira à sombra de Kohl até tornar-se chanceler da nova Alemanha.
Em realidade, a RDA caminhava para uma anexação, dada a impossibilidade de preservar algo da economia socialista no turbilhão capitalista. Isso ficou evidente na unificação monetária, em 1º de julho, três meses antes da unificação marcada para 3 de outubro e menos de oito meses após a abertura do Muro.
De Maizière até conseguiu algumas concessões, como a conversão paritária de poupanças individuais (o câmbio real era de 3 marcos orientais para 1 ocidental). A maioria dos bens da RDA, entretanto, teve seu valor reduzido em dois terços da noite para o dia.
Organizou-se uma logística como só alemães sabem fazer. Montados 10 mil postos de troca de dinheiro, foi preciso fazer chegar até eles 25 bilhões de marcos em notas (não houve tempo de cunhar moedas suficientes, e os centavos orientais continuaram valendo algumas semanas).
No centro de Berlim Oriental, uma multidão se reuniu à meia-noite para festejar. Em 2 de julho, a Folha publicava este comentário sobre os 40 anos até a morte da RDA:
“A atmosfera ontem na Alexanderplatz continha certo mal-estar em relação ao ícone da celebração: o dinheiro. Talvez apenas o olhar estrangeiro possa desvendar o quanto há de postiço no carnaval armado por centenas de arruaceiros. A TV mostrou cenas constrangedoras de cidadãos beijando notas de cem marcos.
“Não é exatamente com esse estado de espírito que 8 milhões de alemães-orientais vão para o trabalho hoje. Em quatro décadas, é a segunda vez que eles são obrigados a ‘zerar’ sua história.”
O tratado de unificação seria assinado no final de agosto, num palácio da avenida oriental Unter den Linden (“sob as tílias”). Kohl não compareceu. Nessa altura a euforia já se dissipara com previsões sobre o desemprego que ameaçava um terço da força de trabalho.
Após brindar a assinatura com Sekt, tradicional espumante alemão, De Maizière atribuiu as dificuldades que viriam “aos 15 mil dias de socialismo”, não “aos 143 dias de economia social de mercado”.
Representando Kohl, Wolfgang Schäuble, ministro do Interior e principal negociador ocidental (hoje presidente do Parlamento), previu: “Estou certo de que a prosperidade virá e ela virá mais depressa do que muitos desconfiam”.
Na minha primeira viagem a Berlim, em 1981, o sol só parecia brilhar na metade ocidental da cidade. Até a torre da Igreja da Memória, partida por bombas da Segunda Guerra, assumia certa aura cenográfica na metrópole luminosa que sobrevivia cercada por 155 km de muralhas.
Naquela época, era quase obrigatório para um jovem intelectual fascinar-se com a língua, a filosofia e o cinema alemães —para não mencionar o socialismo.
A pátria dos engenheiros comunistas, que trocara a foice por um compasso sobre o martelo na bandeira, ficava ali do lado. Bastava tomar o trem S-Bahn para atravessar a Cortina de Ferro.
Era antiturismo de raiz. Na baldeação em Friedrichstrasse, um corredor estreito revestido em fórmica bege conduzia até o oficial de fronteira carrancudo. Ele ou ela revirava o passaporte e anunciava a obrigação de trocar 20 marcos ocidentais por 20 orientais (taxa de câmbio escorchante) e de não retornar com nem mesmo um deles.
A visita ao Museu Pergamon custou uma ninharia. Mesmo escolhendo o melhor prato do restaurante gastava-se meia dúzia de marcos. Livros marxistas saíam por “pfennige” (centavos). Os bolsos se enchiam de “alu-chips”, as leves moedas orientais.
Caminhando pelas ruas quase desertas, aqui e ali topava-se com filas de pessoas em busca de mercadorias escassas. Tudo meio sem cor, inclusive o céu poluído, e um odor de enxofre espalhado pela queima de carvão no aquecimento das moradias.
O mesmo cheiro ainda enchia as narinas no retorno a Berlim Oriental oito anos depois, após a queda do Muro. O propósito era encontrar um local de moradia e também entrevistar o dramaturgo Heiner Müller no teatro Berliner Ensemble, que teve Bertolt Brecht como diretor artístico nos anos 1950.
Alugamos um apartamento no térreo da Bleibtreustrasse, em Charlottenburg, área de barzinhos a poucas quadras da Ku’damm e a 20 m da estação de S-Bahn Savignyplatz. Em meia hora chegava ao lado oriental para trabalhar no centro de imprensa da Mohrenstrasse.
Morar na cidade tornava possível conhecer melhor as cicatrizes deixadas pelo Muro. Na realidade, ele se compunha de duas barreiras separadas pela “zona da morte” pontilhada de torres de vigilância com atiradores.
Na Potsdamer Platz, antes da Guerra setor fervilhante do centro, abria-se em 1990 um descampado onde só havia capim e ocasionais lebres. Uma chaga no coração da cidade.
Hoje a área voltou a ser um ponto agitado de encontro e se tornou irreconhecível, para quem lá morava três décadas atrás, após a construção do modernoso Sony Center.
Até 1989, a muralha passava rente à entrada principal do Martin-Gropius-Bau. O prédio do século 19 precisou ter o acesso a suas exposições transferido para os fundos.
A barreira física de então ficou reduzida, atualmente, a uma fieira de paralelepípedos no asfalto que marca o antigo trajeto do Muro. Há também um trecho de pé em frente à vizinha Topografia do Terror, museu dedicado a lembrar horrores do período nazista.
Outros mil metros do Muro foram preservados na East Side Gallery, exposição a céu aberto com murais de 110 artistas. Mais impactante é o memorial erguido com barras e chapas de aço na Bernauer Strasse, local das cenas de pessoas pulando de janelas para escapar do socialismo.
No restante da cidade, onde os vestígios do Muro há muito desapareceram, o morador de 30 anos passados encontra dificuldade para definir se está dos lados leste ou oeste de então. Uma maneira de distingui-los, no presente, são os trilhos de bondes (hoje modernos VLTs), característicos da banda oriental.
Em agosto passado, a Berlim unificada estava cheia de turistas, muitos jovens. Perseguiam a história rica da cidade zunindo sobre bicicletas e patinetes elétricas de aluguel que berlinenses idosos estão sempre prontos a deplorar.
Como Londres, Berlim deixou um passado cinzento para trás —com a vantagem de contar com quantidade dupla de museus, óperas, teatros e casas de espetáculos. Mais que uma cidade unificada, duas cidades em uma.