‘Carros autônomos não vão resolver o trânsito nas cidades’, diz fundador do Waze

Os carros autônomos, tidos como a grande aposta para a revolução na mobilidade mundial, não vão ser a solução para os congestionamentos nas grandes cidades, defende o empresário israelense Uri Levine, cofundador do aplicativo Waze. Segundo ele, essa tecnologia deve apenas reduzir custos com motoristas, além de trazer mais segurança para as ruas.

Ainda assim, veículos que se locomovem sozinhos por estradas e ruas de grandes cidades, utilizando sensores e ferramentas de ponta de inteligência artificial (IA), são o futuro, segundo ele. “Seus filhos não vão mais dirigir”, prevê o empresário em entrevista ao Estadão.

Uri Levine, 59, iniciou o projeto que deu origem ao Waze em 2006 e, 7 anos depois, vendeu a companhia para o Google por US$ 1,1 bilhão. Desde então, apaixonado por empreendedorismo na tecnologia, o israelense fundou a startup Engie (de diagnósticos automotivos) e o Moovit, app de mobilidade urbana que fornece informações sobre transporte público, comprado pela Intel por US$ 900 milhões em 2020. Atua como mentor e investidor em companhias de tecnologia.

Na próxima semana, Levine chega ao Brasil para realizar a palestra-magna do Summit Mobilidade Estadão, que acontece no dia 28 de maio, das 8h às 19h, na Casa das Caldeiras, em São Paulo. Inscreva-se já e garanta aqui o seu ingresso promocional.

A carreira em tecnologia e empreendedorismo virou livro. Em 2023, no Brasil, o empresário publicou “Apaixone-se pelo Problema, não pela Solução“ (Ed. Citatel, 448 p., R$ 57), obra em que ensina aspirantes a empreendedores a criar empresas de sucesso, os “unicórnios”, nome dado às startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão.

O Levine defende que a chave para uma mobilidade mais eficiente está na reformulação do transporte público, tornando-o mais conveniente, rápido e acessível para todos os cidadãos. E isso significa despriorizar os carros, que são transportes individuais pouco eficientes para o deslocamento em massa nas grandes cidades.

“Para fazer com que as pessoas usem o transporte público, precisamos mudar todo o sistema e a forma como pensamos sobre ele. Torná-lo completamente diferente para que as pessoas o escolham em vez de qualquer outra alternativa”, defende.

Abaixo, leia trechos da entrevista, realizada por videoconferência.

Para onde estamos indo com a tecnologia em relação à mobilidade?

Seus filhos não vão dirigir. Por causa dos veículos autônomos. Isso é algo que estamos esperando há muito tempo e ainda não aconteceu. Mas há muitas mudanças nas regulamentações e na mentalidade. Em geral, você diria, “ok, se houver um acidente, preciso descobrir quem é o responsável”. Quem é a pessoa responsável pelo acidente? É uma pessoa e não uma máquina? Será que temos medo de sermos mortos por uma máquina? Definitivamente, não é uma boa ideia. A realidade é que os veículos autônomos são muito melhores motoristas do que nós. Eles não se distraem. Não leem SMS ou WhatsApp enquanto dirigem. Eles não bebem. Eles podem trabalhar 24 horas por dia. Eles são muito melhores motoristas. Se eu dissesse para substituirmos todos os motoristas do mundo por máquinas, teríamos menos acidentes e vítimas. Mas é mais difícil aceitar isso. O resultado é que isso acabará acontecendo. Começará com áreas limitadas ou estradas limitadas dedicadas a isso. Eles começarão substituindo os motoristas profissionais no transporte público e na logística. Um dos maiores desafios da mobilidade é ajudar as pessoas a evitar engarrafamentos. (Mas) Há mais engarrafamentos hoje do que antes. Sabemos quanto tempo levaremos, mas continuamos presos no trânsito ainda mais do que antes. Em termos de digitalização e eficiência, tudo melhorou drasticamente nos últimos 10 ou 15 anos, enquanto a mobilidade, na verdade, diminuiu. A natureza do problema é a proporção entre o número de passageiros e o número de veículos. Nos EUA, essa proporção é de 1,1 passageiro por veículo. Isso vai mudar. Toda a natureza do transporte mudará radicalmente na próxima década ou duas.

Portanto, os veículos autônomos não são a solução para a mobilidade.

Eles economizarão muitos custos. Para o transporte público, Uber ou táxis, o custo do motorista é o mais significativo. Portanto, os veículos autônomos reduzirão esse custo. Essa é a contribuição deles. E os veículos elétricos reduzirão a poluição e, provavelmente, os custos também.

Mas e o problema do trânsito, como em São Paulo ou em outras grandes cidades?

Pegue metade das ruas e torne-as exclusivas para o transporte público. Tome essa decisão. Se você não mudar as regras de engajamento com a via – quem tem permissão para dirigir onde – então, se dissermos que a natureza do problema é a proporção, ter veículos vazios muda a proporção na direção errada. Para fazer com que as pessoas usem o transporte público, precisamos mudar todo o sistema e a forma como pensamos sobre ele. Torná-lo completamente diferente para que as pessoas o escolham em vez de qualquer outra alternativa.

Você pode dar alguns exemplos? Ou uma cidade que seja uma boa referência?

Cidades com grandes redes de metrô, como Paris, Londres, Nova York ou Madri, são bem-sucedidas porque seus sistemas de metrô não ficam presos no trânsito. Eles têm vias ou faixas exclusivas. Essa é a chave – vias disponíveis somente para o transporte público, e em número suficiente. Isso o torna mais conveniente do que dirigir seu próprio carro. Dirigir tem vantagens, como controle e flexibilidade, mas também desvantagens, como a necessidade de dirigir. Se criarmos algo mais conveniente, que permita que as pessoas se desloquem de qualquer lugar para qualquer lugar, e que seja mais rápido, mais pessoas o escolherão. Isso reduzirá os congestionamentos de trânsito.

O Waze é provavelmente um dos maiores e primeiros produtos de IA que usamos na última década. O sr. concorda?

Eu concordo. Só não sabíamos que poderíamos chamá-lo de IA. Se eu precisasse descrever o Waze hoje, usaria a IA como parte dele. Mas naquela época, quando começamos, não sabíamos que se tratava de IA. Simplesmente o desenvolvemos de forma a criar valor para os usuários e tentar ajudá-los a evitar engarrafamentos e, principalmente, criar certeza, para que você saiba quanto tempo vai levar. Hoje, com certeza todo mundo diria que esse é o pioneiro da IA, mas não é uma geração de linguagem, certo? No último ano e meio, mais ou menos, o que mais estamos vendo é IA para gerar conteúdo. O GPT gera conteúdo, e ele é baseado em linguagem, e chamamos isso de IA. Mas, por um segundo, há tecnologias de IA muito mais importantes que estamos tentando usar ou que temos usado nos últimos anos. Waze ou veículos autônomos, por exemplo. Se pensarmos nos recursos de um Tesla para dirigir sozinho, essa é uma IA muito mais complexa do que apenas gerar linguagem. Essa é a capacidade de realmente tomar decisões. A IA já existe há muito tempo, mas o ChatGPT e a OpenAI criaram uma conscientização muito mais significativa para que todos ouvissem o nome IA e o usassem. Recebo centenas de e-mails de empreendedores e, no último ano e meio, não há sequer um único e-mail que não mencione a IA. Ainda precisaremos explorar alguns casos, mas definitivamente a IA generativa será uma ferramenta que aumentará drasticamente a produtividade em muitos aspectos.

O sr. acha que estamos sob um hype de IA?

Nós estamos. Ainda não encontramos os casos de uso. Há alguns que encontramos, mas se você pensar nisso como uma pessoa comum na rua, entenderá o que o Waze faz por você. O Waze economiza seu tempo, informa quanto tempo vai levar. O Waze cria valor para você. Não tenho certeza se a IA cria valor para você. Muitas empresas usarão a IA para aumentar a produtividade, mas não tenho certeza de que haverá novos serviços oferecidos com base na IA. Se houver, vai demorar um pouco. Na área médica, uma das minhas startups (investida por mim) está tentando usar a IA para raciocínio clínico, e isso aumentará a produtividade dos médicos, mas não os substituirá. Em geral, o uso do termo IA é muito exagerado. Recentemente, em um dos e-mails que recebi, alguém estava abrindo uma cafeteria e basicamente disse: “Esta é uma cafeteria de IA”. Eu estava coçando a cabeça tentando entender o que isso significava, e ainda não consegui entender. Todo mundo está usando IA como um termo. No fim das contas, para as pessoas, não nos importamos com IA. Não nos importamos com a tecnologia. Nós nos importamos com o que ela faz por nós, com o valor que ela nos traz e com os problemas que ela resolve para nós. Se estiver usando IA ou uma varinha mágica, não me importo. Se funcionar e criar valor, então quero usá-la.

O que o sr. aprendeu em sua jornada como empresário, mentor e observador do mercado de tecnologia?

A primeira lição é aceitar que há muitas coisas que eu não sei. Aceitar esse fato permite que você avance mais rapidamente. A melhor abordagem é reconhecer que talvez não saibamos se algo vai funcionar, então tentamos. Se não funcionar, tentamos outra coisa. Essa perspectiva humilde permite um progresso mais rápido.

Defino o empreendedorismo como uma jornada em três dimensões. Primeiro, é uma montanha-russa com altos e baixos frequentes. Segundo, é uma longa jornada. Terceiro, é uma jornada de fracassos. Tentamos várias coisas, achando que sabemos, mas muitas vezes não sabemos, então continuamos tentando e repetindo.

A compreensão dessa jornada de fracassos leva a duas conclusões importantes. Primeiro, se você tem medo de fracassar, você já fracassou porque não tentou. Albert Einstein disse que, se você ainda não fracassou, é porque não tentou coisas novas. Se você tentar coisas novas, fracassará. Em segundo lugar, você precisa fracassar rapidamente. Fracassar rapidamente lhe dá tempo para tentar abordagens diferentes, criar novas versões do produto e desenvolver novas estratégias de entrada no mercado. Mais tentativas aumentam sua probabilidade de sucesso.

Durante os anos do Waze, quando lançamos o produto em Israel, ele foi muito bem-sucedido lá. Entretanto, quando levamos o mesmo produto para o resto do mundo, ele não era bom o suficiente. Conversamos com os motoristas, aprendemos o que não funcionava, criamos a próxima versão.

Quando o sr. olha para trás, sente orgulho do que o Waze se tornou?

Sinto-me orgulhoso e grato por poder cumprir meu destino de criar valor.

No Brasil, nossos empreendedores não gostam da ideia de vender ou sair de sua empresa. Quando é o momento certo para largar sua própria criação?

Há três perguntas que você precisa fazer a si mesmo, ou talvez até quatro. A primeira é: esse será um evento que mudará sua vida? Se for, então você deve começar a pensar nisso com mais seriedade. Se não for, então continue criando. A segunda pergunta, que é ainda mais importante, é: esse será um evento que mudará a vida da equipe? Se for, então pense nisso de forma ainda mais favorável. Se não for, eu diria para negociar novos termos para garantir que ele crie um valor significativo para todas as pessoas que fizeram parte da jornada e ajudaram você a criar o valor. A terceira pergunta seria: você planeja ter mais startups ou esta é uma empresa única na vida? Se você planeja ter mais startups, esta é uma boa oportunidade para passar para a próxima fase. Talvez a última pergunta seja: você gosta do dia seguinte? Quando você é um investidor e sua empresa é adquirida, você recebe o dinheiro e vai embora, e pronto, fim da história. Mas, para a maioria dos empreendedores, quando suas empresas são adquiridas, eles se tornam parte de uma empresa diferente, com uma cultura, uma administração, uma agenda, um plano de negócios e tudo o mais diferente. Você precisa gostar dessa nova oportunidade e vê-la como uma oportunidade, não como uma punição ou algo que você não quer. Essas são as quatro perguntas que eu faria. Se você gostar das respostas, vá em frente e venda. Caso contrário, não venda.

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