Nos primeiros meses da campanha de reeleição, em 2012, um Barack Obama sem paletó discursou, à frente de um caminhão a gás natural, em uma fábrica na Carolina do Norte. O que os Estados Unidos precisavam, disse à multidão, eram mais desses “caminhões americanos de baixo consumo de combustível”, para que país dependesse menos do petróleo e para proteger suas empresas da volatilidade nos preços das commodities.
A empresa escolhida pelo presidente para visitar, a Daimler Trucks, era na época, e continua até hoje, a maior fabricante de veículos pesados na América do Norte e no mundo. Vem produzindo caminhões há 125 anos, e nos dez anos desde o discurso de Obama, conseguiu colocar nas estradas mais veículos não movidos a diesel do que a maioria dos concorrentes, a não ser a chinesa BYD.
Ainda assim, os investidores mal olham duas vezes para a Daimler, enquanto as ações de rivais iniciantes como a Tesla e a Nikola, que não produziram nenhum caminhão com zero emissões até hoje, estão com valores de mercado de arregalar os olhos, em parte graças a suas ambições para desenvolver caminhões elétricos e a hidrogênio.
“Algumas vezes, teríamos gostado de ganhar um pouquinho mais dos holofotes”, admite Martin Daum, que estava ao lado de Obama no evento e lidera a montadora alemã desde 2017. Ser parte de um grupo que inclui uma montadora muitíssimo mais glamorosa, a Mercedes-Benz, faz com que a divisão muitas vezes passe despercebida, reconhece Daum.
Isso está para mudar. Em seus esforços para transformar-se integralmente em uma montadora de luxo de carros elétricos, a Daimler se separará de sua unidade de caminhões em 10 de dezembro, abrindo o capital na Bolsa de Valores de Frankfurt, com a venda de 65% de suas ações. A nova empresa provavelmente fará parte do Dax, o índice referencial do mercado acionário alemão, assim como sua atual dona, que a partir de então passará a ser conhecida simplesmente como Mercedes-Benz.
Em contraste com o desmembramento da Traton, unidade de caminhões da Volkswagen, em 2019, quando a controladora manteve uma participação próxima a 90%, a grande fatia à venda na Daimler Trucks a deixa exposta a olhares muito mais atentos. Em particular, “o foco agora estará muito mais direcionado” a suas fracas margens de lucro, e não aos planos de transição elétrica, segundo Kai Mueller, analista do Barclays. Os investidores sabem que nesta indústria, a “escala é importante, mas a eficiência operacional ainda mais”, acrescentou.
Alguns dos números recentes da Daimler Trucks não são dos melhores. Em 2019, vendeu quase 489 mil veículos, mais que o dobro dos dois concorrentes mais
próximos, a Volvo e a Scania, da Traton, somados. Os dois rivais, porém, alcançaram margens de lucro operacional em torno a 11% no período pré-pandemia, enquanto a Daimler Trucks conseguiu pouco mais de 6%. Os altos custos das operações na Europa, que têm refreado os lucros há anos, continuam pesando sobre os resultados.
A atual estrutura da companhia faz com que a equipe executiva da unidade raramente tenha que responder pelo desempenho abaixo da média, segundo Michael Muders, gerente de carteira de investimento na Union, um dos 15 maiores acionistas do grupo Daimler. “Essas pessoas não ficam na frente dos investidores, sempre foi o diretor de finanças da Daimler que dizia: ‘Claro, os resultados não são bons, mas estamos trabalhando para melhorar isso’.”
“Não havia acompanhamento nem prestação direta de contas”, disse Muders, que é favorável à separação e acrescenta que, em razão dos lucros sólidos gerados pelos utilitários esportivos de luxo da Mercedes, o grupo não sentia necessidade premente de “ser muito agressivo e dar uma sacudida na empresa de caminhões”.
Em entrevista ao “Financial Times”, Daum rebate a afirmação de que a divisão de caminhões sempre foi um fardo para a Daimler. Ainda assim, ele tem tentado alterar a percepção de que a gigante dos veículos pesados é avessa a reformas.
“Temos todos os ingredientes”, insistiu, durante discurso de quatro horas para investidores em novembro, antes de executivos de altos escalões responderem a perguntas de analistas e repórteres sobre praticamente tudo, desde ônibus escolares e softwares até tecnologias de baterias.
“Em um cenário médio de mercado, queremos ter como objetivo [margens de lucro de] 8% a 9%”, disse, referindo-se ao ciclo de negócios turbulento do setor de caminhões, que sobe e desce ao ritmo da economia mundial. “Em condições ensolaradas, pretendemos chegar a mais de 10%.”
Alcançar a meta dependerá da capacidade da Daimler Trucks de empreender mudanças nas instalações na Europa, especialmente em seu país natal, a Alemanha. Em 2019, a Mercedes-Benz Trucks, responsável por Europa e América Latina, mal teve lucro, com uma margem de 0,4%, em comparação aos 11,5% na América do Norte.
Apesar de a demanda ter decolado após a pior fase da pandemia, a margem de lucro da unidade foi de apenas 4,5% nos nove meses até setembro. Karin Rådström, ex-executiva da Scania contratada neste ano para recuperar a divisão, não tem dúvidas do diagnóstico. “Nossos custos”, disse ela, “são muito altos para conduzir o negócio”.
Serão necessários novos cortes de empregos na Alemanha, como parte de um programa para reduzir os custos em 15% em todo o grupo, segundo Rådström, assim como uma redução do número de modelos. O maior desafio da Daimler, no entanto, será convencer os investidores de que a unidade pode ser dominante no futuro pós-diesel, acelerando o lançamento de caminhões e ônibus elétricos e movidos a hidrogênio.
Já existem cerca de 40 caminhões elétricos Daimler nas estradas na América do Norte, com mais de 1,5 milhão de quilômetros rodados no total. A unidade, que, segundo estimativa do Bernstein, pode valer até 46 bilhões de euros depois de desmembrada, formou um empreendimento conjunto com a Volvo para desenvolver sistemas de células de combustível de hidrogênio. A badalação, no entanto, ainda parece exclusividade das startups muito mais novas, com suas grandes promessas de transformar o transporte.
“’David mata Golias’ é sempre uma manchete melhor”, disse Daum, ressaltando que, para o mercado realmente decolar, os clientes pessoas jurídicas precisam ver um “custo total de propriedade” dos caminhões com emissões zero (o custo de compra e operação ao longo da vida útil do veículo) no mesmo patamar que o dos modelos a diesel.
A Daimler não prevê que esse ponto seja alcançado antes da segunda metade da década, e mesmo esse cronograma depende de como será a regulamentação e da expansão dos postos de abastecimento e redes de recarga.
Daum, que passou mais de 30 anos no setor, conhece as armadilhas de querer se antecipar muito à demanda do consumidor. “Já tínhamos um ônibus com célula de combustível há 15 anos”, lembrou. “Infelizmente, ninguém queria comprar.”