Há pouco mais de duas décadas, o valor de mercado da fabricante de computadores Apple era de 10% do da Siemens, a maior empresa da Alemanha. Hoje, com a transformação dos conceitos de negócios, a fabricante do iPhone supera as 30 maiores empresas da Alemanha, a maior economia da Europa
Quando Steve Jobs voltou à Apple como CEO, em setembro de 1997, a fabricante de computadores estava avaliada em US$ 3 bilhões – menos de 10% do valor do conglomerado alemão Siemens, o maior grupo industrial europeu tanto na época quanto hoje.
Duas décadas e meia depois, o valor de mercado da Apple não apenas supera o da Siemens – ao alcançar US$ 1,42 trilhão, a fabricante do iPhone vale mais que todo o índice Dax, das 30 maiores empresas da Alemanha.
As avaliações das empresas têm sido usadas, muitas vezes, para fazer comparações enganosas: existe um grupo de analistas que tenta comparar o valor de grandes multinacionais ao PIB de países inteiros. Mas, às vezes, contrastes desse tipo podem revelar fortes tendências sobre o estado das nações.
O fato de que as 30 maiores empresas da Alemanha foram ultrapassadas por uma única gigante americana é mais do que uma singularidade estatística – é um exemplo extraordinário de quanto a economia alemã, a maior da Europa, corre o risco de ser deixada para trás pelo surto de crescimento tecnológico do século 21.
“Nos últimos dois anos ouvi muitos CEOs alemães dizerem, ‘Se não mudarmos agora, poderemos ter de fechar as portas em entre cinco e dez anos’”, diz Simon Thun, executivo-chefe da consultoria de marcas Interbrand para a Europa Central e do Leste. “Existe, portanto, essa consciência de que podemos ser o próximo dinossauro.”
A longa sombra das Big Tech projetou-se sobre muitos países. O valor da Apple é também quase o equivalente ao principal índice da bolsa australiana de 200 empresas, por exemplo. Mas a Alemanha é um caso especial. O país é o motor da Europa e a quarta maior economia mundial porque suas marcas dominaram a produção e a engenharia da fabricação em massa de qualidade – os elementos fundamentais da indústria do século 20 antes de os softwares começarem a “comer o mundo”, na expressão certa vez usada pelo capitalista de risco Marc Andreessen.
O Dax 30, criado em 1988, abriga um conjunto diversificado de empresas líderes, como a montadora Volkswagen, a empresa de produtos químicos Basf, a seguradora Allianz, a provedora de software empresarial SAP e o grupo de logística DHL. O índice subiu 22% nos últimos 12 meses, e alcançou uma alta recorde. Mas o valor de mercado da Apple mais do que dobrou nos últimos 12 meses.
A comparação entre a Apple e o Dax 30 destaca dois dos maiores temores que assombram os conselhos de administração alemães. Primeiro, embora os lucros e as exportações continuem sólidos, há um mal-estar entre muitos líderes empresariais e políticos alemães de que uma nova era industrial, alicerçada em software e em dados, os está deixando para trás.
“O quadro global é o de que perdemos o trem em termos de tecnologia – o setor que está dominando o século 21”, diz Carsten Brzeski, economista do ING. “Os próximos 20 anos serão dominados pelo comércio eletrônico, pela internet das coisas e pela inteligência artificial. Em todas essas áreas, a Alemanha está atrasada.”
Alguns executivos alemães também se preocupam com a possibilidade de as empresas de tecnologia do Vale do Silício engolirem parcelas significativas da indústria alemã em razão de sua imensa escala. O risco é o de que os setores em que a Alemanha se sobressai, como o de máquinas e produtos químicos, poderão assistir à mesma ruptura que atingiu setores como o fonográfico e o de mídia, num momento em que a tecnologia digital ultrapassa o modelo orientado por equipamentos, baseado em engenharia, que se tornou o núcleo do “milagre econômico” do pós-guerra alemão..
Herbert Diess, CEO da Volkswagen, vê um desafio existencial ao setor automobilístico tradicional vindo de novos participantes. “Se continuarmos na velocidade atual, será muito difícil”, disse.
Essa é uma preocupação compartilhada por Angela Merkel, a premiê da Alemanha. Em entrevista ao “FT” neste mês, ela disse que as empresas de software estão se inserindo nas relações entre produtores e consumidores, tornando-se “intermediárias” essenciais entre as empresas e seus clientes.
As empresas alemãs, advertiu ela, não acompanharam esse fato e correm o risco de ficar para trás. “Não basta mais só vender um produto”, disse ela. “É preciso também desenvolver novos produtos a partir dos dados sobre produtos tradicionais.”
O que ela teme? Que, sem esse know-how, a Alemanha possa acabar se tornando nada além do que uma “bancada de trabalho ampliada”, um tipo de linha de montagem sofisticada. Apesar de todo o mau presságio em torno da queda da competitividade, a catástrofe não se abateu sobre a economia alemã, que continua a extrapolar seu potencial nas exportações.
Em setembro o Instituto Ifo projetou que a Alemanha muito provavelmente ostentará o maior superávit em conta corrente – um indicador do fluxo de produtos, serviços e investimentos – pelo quarto ano consecutivo, estimado em US$ 276 bilhões. Apesar da queda anual de 2,3% das exportações em novembro, os dados refletem o sucesso arrasador da Alemanha nas exportações para a China, seu maior parceiro comercial.
Mas um dos riscos fundamentais é o de que a Alemanha possa ser esmagada tanto pelos EUA quanto pela China – ao ficar de fora do surto de crescimento tecnológico dos americanos, ao mesmo tempo em que enfrenta a crescente concorrência dos chineses, que vêm subindo na cadeia de valor da indústria de transformação.
A professora Alexis Wichowski, da Universidade Columbia, descreve as gigantes americanas de tecnologia como “Estados da rede” – atores não governamentais digitais incontidos por fronteiras que, em alguns casos, têm mais influência do que governos relevantes. Elas ficaram mais valiosas ao formar conexões quase permanentes com os clientes. Os usuários de iPhone verificam as mensagens de seus celulares várias vezes por hora, enquanto empresas como Google e Facebook estão coletando dados dos clientes e lucram com eles de forma que os usuários têm dificuldade em entender.
“Quando você compra um produto, tradicionalmente isso representa o fim da transação; por outro lado, com os ‘Estados na rede’, há uma relação contínua diária, até de hora em hora – quando carregamos dados ou usamos os serviços delas [essas empresas]” afirma Wichowski.
Quando as Big Techs dominam um setor, elas têm a propensão a invadir seara alheia: uma história de sucesso do século 20, a BMW, por exemplo, monta automóveis, e não muito mais do que isso, enquanto as gigantes tecnológicas estão constantemente passando por uma série de transformações estonteantes. A Apple, por exemplo, produz telefones e computadores de luxo, mas está fazendo incursões em vários novos “serviços”, onde pode usar seu peso para minar a concorrência. Seu cartão de crédito não cobra tarifas. Seu pacote de filmes e programas de TV é gratuito por um ano para qualquer pessoa que comprar um equipamento novo da Apple. Seu executivo-chefe, Tim Cook, está tão ávido por ingressar em novos segmentos que tem repetido que “a maior contribuição para a humanidade” feita pela Apple não será na área de computadores ou telefones, e sim na da saúde.
A Amazon se expandiu a partir da venda de livros para dominar a logística da entrega em 24 horas, para produzir seus próprios filmes e para atuar como pioneira em aparelhos de assistência de voz. O Google partiu de organizador das buscas na internet para usuário de aprendizagem de máquina a fim de prever enchentes, rastrear baleias com bioacústica e ensinar robôs com aprendizagem de reforço.
“Estamos diante de um tipo totalmente diferente de entidade”, diz Wichowski, da Universidade Columbia. “A ambição delas, sua escala, as migrações de setor que estão realizando – estamos só começando a entender o alcance dessas organizações nas nossas vidas.”
As empresas alemãs estão especialmente alarmadas com essa perspectiva. Stefan Oschmann, executivo-chefe da Merck, a empresa de ciências biomédicas que compõe o Dax 30, mais conhecida por uma divisão farmacêutica cuja história remonta a 1668, diz que o que o preocupa é “a uberização da assistência médica”, no qual a tecnologia é alavancada, sob demanda, para criar medicamentos específicos para o indivíduo.
“Isso vai mudar o modelo farmacêutico como um todo”, diz ele. “E pode acabar numa situação em que ‘aquele que detém os dados’ para isso seja muito mais poderoso do que ‘aquele que administra [a empresa]’, ou aquele que de fato produz o composto ativo. Portanto, pode ocorrer no futuro que os Googles da vida se tornem os concorrentes do setor farmacêutico.”
Outros grupos alemães bem-sucedidos estão preocupados com a possibilidade de ingresso dos grupos americanos em suas áreas. “Essas empresas têm poder de fogo financeiro para alterar completamente os modelos de negócios”, diz Jochen Thewes, CEO da DB Schenker, uma empresa global de logística administrada pela operadora ferroviária estatal alemã.
Em logística, grandes varejistas eletrônicas encabeçadas pela Amazon estão gastando grandes somas para fazer seu próprio atendimento e transporte da encomenda, invadindo a atividade principal da DB Schenker sem dar muita importância ao lucro de curto prazo.
“É uma máquina de torrar dinheiro, sem a menor dúvida. Estão arriscando tudo, mas estão, é claro, desenvolvendo uma capacidade incomparável, estão desenvolvendo participação de mercado”, diz Thewes. Ao descrever o serviço gratuito de entrega da Amazon como criador de dependência, ele acrescenta que “eles estão dando heroína aos consumidores – porque quando você é um usuário você não quer abrir mão disso”.
A preocupação é maior no setor automobilístico, que responde por um terço dos gastos alemães com pesquisa e desenvolvimento. Num momento em que a Tesla desafia todas as facetas do modelo alemão de produção de automóveis, alguns executivos do setor temem que um século de conhecimento do motor de combustão pode se tornar supérfluo.
Apenas cinco anos atrás, tal afirmação teria parecido ridícula, mas na semana retrasada o valor de mercado da Tesla – que produziu menos que 500 mil automóveis em 2019 – ultrapassou o da Volkswagen, que normalmente vende mais que 10 milhões de automóveis ao ano. Os investidores estão encarando as unidades de produção mundiais da VW como passivos, e não como ativos, ao mesmo tempo em que apostam que a Tesla – a exemplo de Apple, Google e Facebook – poderá gerar nova receita ao transformar o automóvel em plataforma para outros serviços.
Quando os alemães produzem um carro, eles os repassam para as concessionárias, que, então, os vendem para os consumidores. A Tesla, por sua vez, vende seus veículos diretamente aos consumidores. E mantém essa importante conexão oferecendo aos donos atualizações de software “over-the-air” (OTA). A montadora, que agora constrói uma fábrica perto de Berlim, recolhe dados dos sensores do carro quando está no que chama de “modo sombra” de autopilotagem. Esses dados alimentam seus algoritmos para melhorar a capacidade dos carros autoguiados.
Nos últimos dez anos, a Alemanha encontrou dificuldades para reagir a tais inovações – um resultado direto do fato de o país carecer desse tipo de ecossistema de software, que permitiu à Tesla se diferenciar, segundo Diess.
“Nós temos, eu diria, desvantagens nessa questão”, disse Diess ao “FT”. “Não temos as grandes empresas de tecnologia aqui, e você precisa se aliar a elas. Então, ou você pode ir à Costa Oeste ou podemos ir à China. Não temos tamanho nem capacidade em software. Não temos uma indústria de software.”
Alexander Rinke, coexecutivo-chefe da Celonis, uma empresa alemã de software avaliada em US$ 2,5 bilhões, diz que passou muito tempo tentando descobrir por que a Alemanha havia perdido o espírito do “Gründerzeit” – a “época fundadora”, no fim do século 19, quando Daimler, Bayer, Basf, Deutsche Bank e Allianz foram fundadas.
“Não acho que seja o mercado e não acho que seja a cultura, o que me dá esperanças porque essas duas coisas são difíceis de mudar”, diz. “E não acho que seja o talento, porque quando você olha para a academia, a Alemanha está fazendo importantes contribuições para muitos campos.
Ele acredita que ausência de capital de risco para encorajar o empreendedorismo nos últimos 50 anos foi um dos principais motivos que levaram o pêndulo da inovação a passar para o lado dos EUA.
“A infraestrutura financeira – o modo como as pessoas investem capital e alocam capital – provavelmente é o principal motivo pelo qual a Apple, o Google e o Facebook são todas americanas e nenhuma dessas empresas é alemã ou europeia”, diz.
A cena de startups na Alemanha mostra alguns sinais de mudança. Uma série de rodadas de financiamento conferiu status de “unicórnio” para algumas empresas com sede no país: o banco digital N26 e a startup GetYourGuide, enquanto o grupo de software TeamViewer promoveu um dos maiores lançamentos de ações da Europa em 2019.
Mas essas histórias de sucesso ainda são exceções. No “clube mundial dos unicórnios” da CB Insights – uma compilação de empresas de capital fechado avaliadas em mais de US$ 1 bilhão – apenas 12 das 445 empresas integrantes são alemãs, em comparação às 217 americanas, 106 chinesas e 24 britânicas.
Oschmann, da Merck, destaca igualmente que o capital de risco é o ingrediente que falta, mas acrescenta que as empresas também carecem de um ecossistema de apoio dos serviços militares e de inteligência – que ajudaram a ascensão tecnológica na China, Israel e Coreia do Sul, assim como nos EUA.
“A Europa atualmente não está realmente em posição de concorrer, no que se refere a essas plataformas de tecnologia”, diz. “Não temos nenhum capital de risco expressivo […] No que a Europa é boa? A Europa é boa em fazer produtos físicos diferenciados.”
Nos EUA, os grandes fundos de pensão há muito investem em startups tecnológicas por meio de capital de risco, enquanto os fundos de pensão da Alemanha costumam ser ultraconservadores e alocar a maioria de seus investimentos em títulos de dívida soberana de baixo rendimento – uma tática que Oschmann considera absurda. “Há menos risco em investir em [capital de risco] do que em bônus do governo italiano”, diz.
Isso vem mudando. De acordo com a Dow Jones VentureSource, a Alemanha deve ter registrado quase US$ 7 bilhões em investimentos em capital de risco em 2019, mais que o dobro de dois anos atrás.
Diess, da Volkswagen, diz que o exemplo de Steve Jobs na Apple demonstra por que a indústria alemã precisa mostrar mais urgência. À medida que os carros se transformam em iPhones sobre rodas, ele teme que a Volkswagen corra o risco de tornar-se outra Nokia, que perdeu seu domínio do mercado de celulares para a Apple.
“Caros colegas, essa é exatamente a situação que se repete na indústria automotiva”, disse a gerentes da Volkswagen. “O carro não é mais apenas meio de transporte. E isso significa que acabou o tempo dos fabricantes clássicos de automóveis.”