“Nós queremos superar a Disney nas animações para a família.” A frase soa ousada vinda de qualquer um —afinal, foi desenhando Mickey Mouse e aperfeiçoando técnicas de animação que o estúdio do ratinho entrou no caminho para se tornar o império que é hoje. Mas agora surgiu alguém querendo acabar com a festa da líder do gênero.
A frase foi dita por Reed Hastings, um dos fundadores e CEOs da Netflix, no começo deste mês, em entrevista à revista The Hollywood Reporter. “Isso vai levar um tempo. Quer dizer, eles são realmente bons nisso”, ele acrescentou.
Podem até argumentar que Hastings está sonhando alto. A Disney é, afinal, a sétima marca mais valiosa do mundo, de acordo com a Forbes, e foi preciso animação para chegar lá. Mas a história de origem da Netflix é embrulhada em ceticismo — e deu no que deu.
Nesta semana, chega à plataforma de streaming o que parece ser, até agora, sua maior demonstração de força nessa prometida guerra dos filmes animados, “A Caminho da Lua”. O longa não só se apropria de uma fórmula que alçou vários dos desenhos da Disney ao status de clássicos, como também convenceu Glen Keane, animador de obras como “A Bela e a Fera” e “Tarzan”, a mudar de time.
Depois de quase quatro décadas de Disney, Keane é literalmente uma lenda por lá —a empresa tem como tradição distribuir títulos de “Disney Legend” a nomes importantes de sua história. Antes animador, ele estreia como diretor de um longa em “A Caminho da Lua”, dois anos depois de vencer um Oscar pelo curta “Dear Basketball”, feito com o jogador Kobe Bryant.
“Eu não olho para objetivos e julgo se eles são realistas”, diz Keane ao ser provocado com a fala de Hastings. “Quem imaginaria que a Disney se tornaria uma empresa tão grande? Pode até ser um objetivo maluco, mas os CEOs da Netflix têm um pouco de Fei Fei —eles acreditam que o impossível é possível.”
Fei Fei é a protagonista de “A Caminho da Lua”, uma garota que perdeu a mãe. Quando descobre os planos de seu pai de se casar de novo, ela cria um foguete para viajar até Chang’e, a deusa chinesa da Lua. Ela espera que a lenda, nascida a partir de uma promessa de amor eterno, inspire o viúvo a continuar sozinho.
O filme é uma coprodução da Netflix com o chinês Pearl Studio. A parceria mostra que, na busca para liderar a produção de desenhos, o streaming deve adotar uma das principais estratégias que deram ao serviço a alcunha de gigante —ao firmar acordos com produtoras locais, a Netflix consegue fornecer um volume arrebatador de conteúdo, conquistando mercados regionais e então se expandindo.
“Quando eu saí da Disney, eu saí com a vontade de viver criativamente sem barreiras. Existem animadores em tantos países querendo compartilhar sua cultura, que eu acho que esse gênero não devia se resumir a um grupo de pessoas em Hollywood”, diz Keane, que é americano. “‘A Caminho da Lua’ não é uma visão ocidental da China, é uma trama contada a partir de Xangai.”
Quando embarcou no projeto, Keane não imaginava o quão pessoal era o filme para Audrey Wells, que o roteirizou —ela levou o projeto à Netflix sem dizer que estava com câncer. Ela queria que a animação fosse uma carta de despedida à filha e ao marido.
“Quando a Audrey me disse que estava doente, estava claro que ela provavelmente não veria esse filme pronto. Então eu assumi a tarefa de terminar de forma muito séria, porque percebi que aquilo era muito mais que entretenimento. Essa história era uma mensagem sobre seguir em frente que ela estava dando à sua família, e muita gente pode se relacionar com isso.”
Também americana, Wells morreu em outubro de 2018, aos 58 anos. Os chineses ficaram com os créditos de produção do novo filme.
O fator luto pode aproximar “A Caminho da Lua” de muitas animações da Disney, um estúdio que costuma inserir a temática em seus filmes com frequência. Seu longa seminal, “Branca de Neve e os Sete Anões”, já era ele próprio ancorado numa protagonista órfã.
Mas há outros pontos em comum com os clássicos de Mickey Mouse. Aqui também vemos uma heroína que deixa sua família para trás, na companhia de criaturas fofas e que servem de alívio cômico.
Como se não bastasse, o longa é um musical, com direito até a uma música que serve de “coração do filme”, como o próprio Keane definiu “Parte do Seu Mundo” para convencer os executivos da Disney a não cortarem a canção de “A Pequena Sereia”. Nos anos 1990, o americano foi o animador da protagonista Ariel.
Em “A Caminho da Lua”, a faixa que serve de alma da história e que expressa todos os desejos de sua heroína é “Vou Voar”, que Fei Fei canta enquanto planeja sua ida à Lua.
“Tudo o que eu sabia quando conheci Audrey Wells é que ela tinha escrito essa história incrivelmente sincera sobre perda e luto, e que ela amava musicais, apesar de não ter escrito ‘A Caminho da Lua’ como um musical”, conta Keane. “Quando eu disse que achava que o filme deveria ter músicas, seus olhos brilharam.”
Com uma ampla campanha de marketing e a promessa de agradar pequenos e adultos num ano em que as animações da concorrência foram expulsas dos cinemas, fechados ou sem público grande o suficiente por causa da pandemia, “A Caminho da Lua” é uma fração de uma série de apostas animadas da Netflix.
No ano passado, o streaming distribuiu a indicada ao Oscar “Klaus”. Para o futuro, a plataforma planeja desenhos de peso, como “Pinóquio”, de Guillermo del Toro.
Enquanto a Netflix se aventura pelas animações, a Disney também trilha um caminho para bater de frente com a novata, investindo massivamente em seu próprio streaming, o Disney+, que chega ao Brasil no dia 17 de novembro.
Mas Keane pretende continuar pela Netflix, em que conta já desenvolver um novo projeto. “Eu acho que esse vai ser um ótimo estúdio de animação. Enquanto trabalhava em ‘A Caminho da Lua’, todos os dias conhecia animadores de diferentes países, com novas ideias, bem como ex-funcionários de outros estúdios, como Disney, Pixar e Dreamworks.” A largada foi dada.