Terceiro mandato de Xi Jinping amplia risco de guerra entre China e Taiwan

Desde a infância, Wang You-cheng e seus amigos debatiam uma hipótese que parecia não passar de conjectura: Se a China atacasse, eles estariam dispostos a lutar para proteger seu lugar?

Crescendo em Hualien, onde meia dúzia de instalações militares guardam a costa leste de Taiwan, os meninos tinham se acostumado aos sons e vislumbres da preparação para uma guerra que, parecia, jamais chegaria.

Janelas acústicas nas escolas bloqueavam o ruído de caças de combate F-16; caminhões militares dividiam as ruas com ciclomotores. Wang e seus amigos participaram de competições de sobrevivência e aprenderam a disparar pistolas de ar comprimido.

Suas brincadeiras agora se metamorfoseiam em diretrizes básicas de defesa civil, à medida em que eles dão conta que a guerra está mais próxima do que pensavam. “Taiwan é certamente um dos lugares mais perigosos do mundo”, afirmou o adolescente de 17 anos, que visitava uma loja de armas de pressão acompanhado de seus amigos de infância Liao Hong-yu, de 17 anos, e Chen Yi Hsiang, de 18.

Trata-se de uma realidade que ascende no horizonte dos mais de 23 milhões de habitantes da ilha à medida que a determinação do líder chinês, Xi Jinping, de “resolver a questão de Taiwan”, cresce juntamente com suas ambições de consolidar a posição da China no topo da ordem global. A busca de Xi por esses objetivos arrisca ocasionar um conflito militar mais amplo, que oporia a China aos Estados Unidos e seus aliados na Ásia.

O presidente americano, Joe Biden, reiterou no mês passado que as tropas de seu país defenderão Taiwan se a China invadir, apesar de autoridades da Casa Branca terem afirmado posteriormente que suas declarações não sinalizaram nenhuma mudança na posição americana de ambiguidade estratégica em relação à ilha.

A expectativa é que Xi assegure um terceiro mandato na próxima semana, o que lhe concederá poder estendido e mais latitude para realizar o “grande rejuvenescimento da nação chinesa”. Unificação com Taiwan, por meio de força ou negociações, é parte central dessa visão.

Por décadas, líderes chineses prometeram tomar Taiwan, para onde as forças militares do Kuomintang e centenas de milhares de chineses fugiram e estabeleceram um governo rival após sua derrota, em 1949, para o Partido Comunista Chinês (PCC). Gerações de estudantes chineses aprenderam na escola que Taiwan é uma parte inviolável de seu país, separada por um acidente na história. Sob Xi, essa narrativa deixou de ser mera propaganda.

“Ele não considera isso apenas slogan. Para ele, trata-se de um plano de ação que deve ser implementado”, afirmou o professor Chang Wu-ueh, da Universidade de Tamkang, especialista nas relações entre a ilha e o continente e conselheiro do governo de Taiwan. “Antes, os líderes falavam da unificação como algo a ser alcançado no longo prazo. Agora, é o objetivo número um em sua agenda.”

Durante a instável trégua que paira desde que a China cessou os bombardeios contra ilhas costeiras de Taiwan, nos anos 70, ambos os lados do estreito apenas de afastaram. Enquanto Taiwan evoluiu para uma democracia multipartidária e seus cidadãos foram se identificando cada vez mais como taiwaneses, em vez de chineses, Pequim ficou cada vez mais inflexível a respeito de sua posição de que Taiwan — que nunca foi governada pelo PCC — é parte da China e exigindo que o mundo reconheça isso.

O posicionamento intransigente da China a levou a cortar comunicações oficiais com o governo da presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, pondo fim a anos de intercâmbios e cooperações comerciais — que, esperavam as autoridades chinesas, levariam à unificação; e, esperavam as autoridades taiwanesas, evitariam o conflito.

Aeronaves militares da China passaram a ignorar a linha mediana no Estreito de Taiwan, que funcionava como uma fronteira não oficial respeitada por ambos os países há décadas. Banimentos de exportações prejudicam agricultores e empresas da ilha, enquanto as autoridades de Pequim prometem “punição resoluta” para qualquer que seja considerado defensor da independência de Taiwan. Em Hong Kong, modelo da fórmula “um país, dois sistemas” que a China propõe para Taiwan, uma abrangente lei de segurança nacional esmagou a sociedade civil e grande parte da autonomia da cidade.

Em repulsa à abordagem linha-dura, os taiwaneses reelegeram Tsai com uma votação expressiva em 2020, depois que ela enfatizou o destino de Hong Kong como razão para rejeitar acenos de Pequim. Xi, que completará 70 anos no próximo ano, encontra agora cada vez menos opções para cumprir sua missão pacificamente — o que eleva a chance de Pequim poder eventualmente apelar para a ação militar. Xi classificou a unificação como “inevitável” e afirmou que usará força se necessário.

Em um discurso pronunciado na segunda-feira, marcando o Dia Nacional de Taiwan, Tsai foi igualmente resoluta. “O consenso mais amplo entre o povo taiwanês é que devemos defender nossa soberania nacional e nosso modo de vida livre e democrático”, afirmou ela. “Não há espaço para concessões.”

‘Primeiro ataque’

O ministro da Defesa taiwanês afirmou este mês que qualquer intrusão de aeronaves ou drones militares da China no espaço aéreo taiwanês constituirá um “primeiro ataque” — ação que o ministério definia anteriormente como um ataque de artilharia e mísseis.

Para os moradores de Hualien, uma pitoresca cidade na costa leste taiwanesa, mais próxima do Japão que da China, esse aviso assumiu um novo significado à medida que as aparentemente longínquas tensões no Estreito de Taiwan bateram à sua porta. Em agosto, em retaliação à visita da presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, a Taipei, o Exército de Libertação Popular disparou mísseis que atravessaram o céu de Taiwan e realizaram exercícios militares para simular um bloqueio à ilha, incluindo um disparo, inédito, de mísseis que atingiram o mar costeiro de Hualien.

Os voos anteriormente regulares dos caças de combate F-16 de Taiwan subitamente se tornaram imprevisíveis, enquanto os aviões patrulharam os céus dia e noite para interceptar aeronaves chinesas. Quando as manobras da China começaram, Bao Jhih-jia, de 33 anos, que gerencia um café construído sobre uma antiga fortificação, debateu com sua mulher se eles deveriam fugir ou se esconder na eventualidade de um ataque.

“É claro que não concordamos com a unificação”, afirmou ele. “Mas neste momento, se houver uma guerra, Taiwan certamente seria incapaz de vencer.”

O governo de Taiwan tem construído instalações militares e estacionado armamento em Hualien e outras partes da costa leste taiwanesa desde 2016, quando as relações com a China pioraram após a primeira eleição de Tsai, líder do Partido Democrático Progressista, que Pequim considera independentista.

Novos caças de combate estão sendo estacionados em Hualien, onde um hangar construído em um sistema de cavernas é capaz de abrigar 200 jatos protegendo-os de mísseis inimigos, de acordo com Kolas Yotaka, ex-porta-voz da presidência que concorre atualmente ao governo do Condado de Hualien. Novos drones de vigilância e sistemas de mísseis antinavio também estão chegando à costa leste, de acordo com anúncios do governo.

“Não podemos ser ingênuos ao ponto de pensar que a China não atacará”, afirmou Yotaka. “O front não é mais apenas no oeste, em Kinmen e Matsu”, afirmou ela, referindo-se às ilhotas controladas por Taiwan mais próximas à China. “Agora, a costa leste é um front.”

Por toda Taiwan, cidadãos têm pensado mais seriamente sobre a possibilidade da guerra, inspirados em parte pela resistência ucraniana contra a Rússia. Ex-soldados, políticos e organizações não governamentais organizam aulas de autodefesa e primeiros-socorros, assim como palestras sobre como um ataque da China poderia se desdobrar. Um exercício militar aéreo de quatro dias, organizado em julho, foi expandido para envolver cidadãos escondendo-se em abrigos antiaéreos.

Promessas

Para muitos, a dúvida é quando, não se Pequim concretizará suas ameaças. Tendo visto a maneira como o movimento pró-democracia em Hong Kong foi esmagado, taiwaneses como Wang e seus amigos, em Hualien, têm pouca fé nas promessas de autonomia feitas por Pequim no caso de um arranjo similar de dois sistemas.

“Não dá para acreditar no que eles dizem”, afirmou Liao. “Precisamos aprender melhor a nos salvar.”

Uma invasão em escala total a Taiwan envolveria operações anfíbias de desembarque de tropas, necessidade de transporte de contingentes enormes, blindados e suprimentos através do notoriamente complicado estreito de 160 quilômetros de largura. Especialistas militares afirmam que o Exército de Libertação Popular ainda não está equipado o suficiente para isso, apesar das capacidades militares da China estarem aumentando.

Ainda que a eleição presidencial em Taiwan no próximo ano possa influenciar os cálculos de Pequim, autoridades de segurança nacional e conselheiros do governo de Taiwan citam duas datas em particular no calendário. Em 2027, as Forças Armadas chinesas poderão ser capazes de lançar um ataque total contra Taiwan, afirmou ao Congresso dos EUA o almirante Philip Davidson, ex-comandante militar das forças americanas no Indo-Pacífico. 2049, ano do centésimo aniversário da fundação da República Popular da China, é a data-limite estipulada por Xi para realização do “grande rejuvenescimento” da China.

“Não temos tanto tempo para nos preparar e temos muito menos recursos que a China. Há um desequilíbrio extremo”, afirmou Lee Hsi Ming, ex-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas de Taiwan.

Xi é contido pelo fato de que um ataque seria uma aposta enorme, que possivelmente amarraria a China a uma custosa guerra com os EUA. Apesar dos posicionamentos crescentemente agressivos, Pequim deu passos para evitar que as tensas relações com Washington piorem. Xi e Biden, que conversaram por telefone antes da visita de Pelosi a Taiwan, deverão se encontrar nos bastidores da cúpula do Grupo dos 20, em novembro.

Xi tem outras opções além de um ataque em escala total, que incluem: aumentar as sanções contra empresas taiwanesas, intensificar táticas em zonas cinzentas — ações coercivas que não chegam a um conflito armado, mas exaurem as forças militares da ilha — e isolar ainda mais Taipei na arena internacional.

“É um constante alerta para Taiwan e os EUA a China ser capaz de fazer mais, ir mais longe”, afirmou Bonnie Glaser, diretora do programa para Ásia do German Marshall Fund. “Os chineses querem pressionar a capacidade de Taiwan exercer sua própria soberania até que, eventualmente, o povo taiwanês diga: ‘Nossas vidas não vão melhorar até que concordemos em ser parte da China continental’.”

Contudo, à medida que a China aplica pressão crescente, o povo de Taiwan se considera cada vez mais distinto em relação aos chineses do outro lado do estreito — e consequentemente menos inclinados a aceitar o governo da República Popular. Depois que o ELP disparou mísseis que atingiram águas próximas a Taiwan, em 1996, em retaliação contra a visita do então presidente taiwanês, Lee Teng-hui, aos EUA, o índice de pessoas que se identificavam apenas como taiwanesas na ilha foi a 34% em 1997, contra 25% dois anos antes, de acordo com uma pesquisa da Universidade Nacional de Chengchi. Em 2020, esse índice foi a 64% após a repressão em Hong Kong; e desde então tem permanecido no mesmo patamar.

“Toda vez que os habitantes de Taiwan testemunham as provocações da China, isso aumenta seu senso de oposição — de que não somos um mesmo povo”, afirmou a jornalista independente Liya Chen, que apresenta o podcast “Uma história em Taipei”. “Se alguém aponta uma arma contra você, isso o faria querer se juntar a ele?”

Para os adolescentes Wang, Chen e Liao, a resposta à pergunta sobre a maneira que eles reagiriam a um chamado para combater a China é simples: Eles não teriam escolha.

Assistindo os esforços da China em pressionar Taiwan e notando os riscos de sua terra-natal ser pega por um conflito entre duas grandes potências, China e EUA, eles acreditam que possivelmente testemunharão a guerra durante suas vidas. E se perguntam se os adultos estariam ocupados demais trabalhando para pensar nesses assuntos. A Ucrânia tem sido um exemplo instrutivo.

“No século 21, ainda pode existir esse tipo de guerra…”, disse Liao. “Em que um grande país vai à guerra para conquistar uma pequena parcela de território”, acrescentou Chen “Os humanos nunca aprendem a lição”, concluiu Wang, balançando negativamente a cabeça.

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