Startup latina atrai mais investimentos

Atividades como comprar um carro usado, alugar um apartamento ou abrir uma conta de banco são pesadelos recorrentes na América Latina, em razão das montanhas de papelada, da letárgica burocracia e das armadilhas jurídicas a evitar. 

Startups criadas para superar problemas como esses vêm catapultando a região à crista da onda de crescimento do setor tecnológico nos mercados emergentes. Em 2020, US$ 4,1 bilhões em investimentos de capital de risco fluíram para a América Latina, superando os US$ 3,3 bilhões do Sudeste Asiático e também o total combinado direcionado à África, Oriente Médio, Europa Central e Leste Europeu, segundo a organização setorial Global Private Capital Association. 

No primeiro semestre de 2021, a América Latina atraiu US$ 6,5 bilhões em capital de risco, não tão longe dos US$ 8,3 bilhões da Índia. 

“Começamos neste setor em 1999 quando mal havia internet, quase todas as conexões eram discadas e a penetração da internet era de 3%”, disse Hernán Kazah, cofundador da Kaszek Ventures, maior fundo de investimentos em empreendimentos ainda em fase inicial na América Latina, com mais de US$ 2 bilhões de capitais levantados até hoje. “Hoje, a América Latina enfim tem massa crítica em quase todos os mercados.” 

O Nubank exemplifica bem o novo tipo de startup latino-americana. Cofundada em 2013 pelo empreendedor colombiano David Vélez, após ele ter levado seis meses para abrir uma conta de banco quando se mudou para São Paulo, a empresa cresceu de forma exponencial e hoje tem mais clientes do que qualquer outro banco digital independente no mundo. 

Uma futura oferta pública inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) poderia conferir um valor de mais de US$ 50 bilhões à “fintech” brasileira, segundo notícias recentes. Em comparação, a empresa de maior valor de mercado na América Latina, o Mercado Libre, resposta da região à Amazon, fundado em 1999 na primeira onda local de efervescência do setor de tecnologia, vale cerca de US$ 79 bilhões. 

A nova safra de startups latino-americanas tem atraído a atenção de alguns dos investidores com os bolsos mais recheados no mundo da tecnologia. Em setembro, Marcelo Claure, o diretor de operações do SoftBank, que nasceu na Bolívia, anunciou um segundo fundo de investimentos em tecnologia dedicado à América Latina, prometendo US$ 3 bilhões além dos US$ 5 bilhões do primeiro fundo, criado em 2019. 

“Ficamos incrivelmente surpresos com a qualidade e a quantidade de ótimas empresas que estavam sedentas por capital, então começamos a investir”, disse Claure ao “Financial Times”. “Há muito espaço para melhorar a vida das pessoas na América Latina, porque todos os sistemas são ineficientes e estão atolados em burocracias […], oportunidades enormes para as empresas de tecnologia sacudirem [o mercado].” 

A Kavak, primeiro unicórnio do México, é uma dessas empresas que surgiram para transformar o mercado. Avaliada em US$ 8,7 bilhões em uma rodada de financiamento em setembro, a empresa almeja facilitar a arriscada experiência de comprar um carro usado. Oferece aos compradores uma revisão mecânica, garantia de três meses, rápidas linhas de crédito on-line e entrega em domicílio. 

A brasileira Quinto Andar vem simplificando o desafio de alugar um apartamento, ao oferecer seu próprio seguro a inquilinos que passam por uma pré-checagem, eliminando, assim, as exigências de enormes depósitos em dinheiro, fiadores ou custosos seguros. 

A startup chilena NotCo usa tecnologias de inteligência artificial para criar combinações incomuns de plantas e imitar o sabor e a textura de produtos como leite, maionese, sorvetes e carne. Avaliada em US$ 1,5 bilhão em rodada de financiamento em julho, a NotCo agora se expandiu para os Estados Unidos e Canadá. 

Kavak, Quinto Andar e Nubank mostram como as startups mais bem-sucedidas da América Latina foram criadas para amenizar problemas específicos na região. 

“Essa história de trazer o Vale do Silício e tentar tropicalizá-lo não funcionou”, disse Ivonne Cuello, ex-executiva-chefe da associação setorial das firmas de investimentos em negócios de capital fechado da região, a Lavca. “Os modelos que começaram a ser bem-sucedidos foram os que disseram: ‘Há problemas estruturais na região que podem ser resolvidos por novas empresas […] projetadas exclusivamente para as necessidades da região’.” 

Kazah, da Kaszek, disse que, agora, os inovadores na América Latina despertam inveja. “Você vê empresas fora da região dizendo: ‘Quero ser o Nubank da Alemanha’. Isso não costumava ocorrer.” 

O setor de serviços financeiros vem dominando a cena das startups na América Latina, tendo recebido cerca de 40% desse tipo de investimento em 2020, segundo dados da Lavca. 

Antes da pandemia, mais da metade das pessoas da região não tinha conta em banco. Em alguns meses, de maio a setembro de 2020, 40 milhões de pessoas abriram uma conta bancária, de acordo com pesquisa da Mastercard. 

Fintechs como o Nubank e a argentina Ualá tiveram papel fundamental em facilitar essa expansão. No Brasil, o Banco Central lançou o Pix, um sistema de transferência rápida de dinheiro por meio de celulares que possui 110 milhões de usuários cadastrados. 

“Você tem alguns dos bancos mais lucrativos do mundo no Brasil e no México, então, é uma primeira frente óbvia”, disse Claure, do SoftBank. “Esses bancos são altamente ineficientes, muitas agências, filas longas e tudo isso […] então começamos com as fintechs.” 

Assim como em outras regiões, a pandemia acelerou a transformação digital. A América Latina tem algumas das taxas de mortalidade per capita pela covid-19 mais altas do mundo e algumas das piores recessões econômicas, mas a pandemia também obrigou as pessoas a ter uma atividade econômica on-line muito maior. 

“Por muitos anos, a América Latina, uma região que é grande enquanto porcentagem do PIB global, porque tem países de renda média, teve investimentos insuficientes em tecnologia”, disse Pierpaolo Barbieri, que fundou a Ualá em 2017. “O que estamos vendo agora é uma recuperação geral do terreno perdido, em que todos estão correndo para ver quais são as oportunidades.” 

Em algumas áreas, a região ainda é retardatária. “O comércio, na China, é feito 70% on-line e, nos Estados Unidos, quase 50% […], na América Latina, ainda está em 20%, então o processo de digitalização econômica ainda tem um longo caminho pela frente”, acrescentou Barbieri. 

Julio Vasconcellos, cofundador do Atlântico, um fundo de capital de risco latino- americano, fez uma comparação entre o valor de mercado total das empresas de tecnologia na América Latina em relação ao PIB e o das companhias asiáticas do setor. 

“Quando você olha a evolução do mercado dos EUA, a evolução do mercado chinês e, agora, a da América Latina, a curva tende a ser muito semelhante ao longo do tempo”, disse ele. “É lento e gradual até que, em algum momento, atinge um ponto de inflexão e começa realmente a se acelerar.” 

“A América Latina está passando por esse ponto de inflexão cerca de dez anos depois dos Estados Unidos e cerca de sete a oito anos depois da China.” 

A capitalização total das empresas de tecnologia na América Latina equivale a 3,4% do PIB, segundo Vasconcellos, em comparação aos 30% na China e 14% na Índia. Se a América Latina atingir os níveis chineses de participação das empresas de tecnologia na economia, “estamos falando sobre o equivalente a mais de US$ 1 trilhão em valor de mercado sendo criado”. 

Ainda não está claro quanto tempo isso pode levar. Francisco Álvarez-Demalde, cofundador da Riverwood Capital, cuja sede fica nos EUA, investe em tecnologia na América Latina desde 2008. Embora ele concorde que a região vem passando por um período de “muita empolgação” e que o crescimento da receita no setor de tecnologia deve ser alto, ele destaca que o financiamento oscila ao longo do tempo. 

“Há um aumento significativo na disponibilidade de capital na região, que se acelerou nos últimos anos num ritmo muito rápido”, disse ele. “É difícil dizer em que ponto do ciclo estamos […] devemos estar preparados para volatilidade nessa frente. ” 

A região enfrenta outros desafios. Como grande exportador de commodities, está sujeito a ciclos econômicos de expansão e queda, e a esfera política é marcada pela volatilidade. O atual ciclo eleitoral gerou uma onda de candidatos antiestablishment e demandas por maior intervenção do Estado na economia. 

Também há problemas de ordem prática. Engenheiros de software são escassos, a não ser no Brasil, e as universidades não vêm produzindo um número suficiente de formados com conhecimento em tecnologia. Muitas áreas carecem de conexões fixas de banda larga. 

Ainda assim, Claure, do SoftBank, sente-se à vontade em elevar suas apostas em tecnologia. “Hoje, o fundo latino-americano tem mais de 100% de TIR [taxa interna de retorno], em moeda local, e é provavelmente o fundo de melhor desempenho que temos hoje do ponto de vista da TIR.” 

O Nubank tem base para ser considerada a maior história de sucesso na cena das startups brasileiras. Desde o lançamento de um cartão de crédito sem taxas anuais em 2014, a fintech conquistou mais de 40 milhões de clientes em seu país, no México e na Colômbia. Uma rodada de financiamento neste ano deu ao unicórnio uma avaliação de US$ 30 bilhões e, agora, a companhia estuda uma oferta pública inicial de ações nos Estados Unidos. Com foco em tecnologia e nos serviços ao cliente, o grupo com sede em São Paulo tem desafiado um setor bancário brasileiro conhecido pelos altos encargos e pela burocracia. Por meio de seu aplicativo para telefones celulares, o Nubank também oferece contas pessoais e empresariais, empréstimos, seguros e produtos de investimento. 

A plataforma on-line de venda de carros usados Kavak foi fundada no México em 2016 por empresários venezuelanos. A empresa recentemente levantou US$ 700 milhões em uma das rodadas de financiamento mais altas na América Latina, que a avaliou em US$ 8,7 bilhões. Os investidores incluem nomes como General Catalyst e SoftBank. Os clientes podem comprar ou vender seus carros usados no próprio site. A empresa atua como intermediária e realiza revisões dos veículos, além de oferecer financiamento, garantias e entrega em domicílio. A Kavak já atua no Brasil e na Argentina e almeja prosseguir com a expansão. 

O Rappi é o grande destaque entre as startups de sucesso da Colômbia. Empreendedores locais fundaram a empresa em 2015 para entregar comida, mas desde então ela se ramificou em áreas como a de serviços financeiros. Tendo se expandido para nove países e mais de 200 cidades, a empresa almeja se tornar o “superapp” da América Latina. Entre as inovações do Rappi está o serviço Turbo Fresh, que promete entregar os produtos mais solicitados aos clientes em dez minutos, utilizando uma avançada logística para o transporte da “última milha” até o destino final. O nome da empresa brinca com a palavra “rápido”, que se escreve igual em espanhol. (Tradução de Sabino Ahumada) 

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/10/18/startup-latina-atrai-mais-investimentos.ghtml

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