Relatório pode enfim mudar o Japão corporativo

Nas últimas 17 semanas, um programa de grande sucesso nas noites de domingo no Japão foi a dramatização da vida de Eiichi Shibusawa – o rosto na nova cédula de 10.000 ienes e “pai do capitalismo japonês”. A série ainda tem meses pela frente, mas já sabemos como termina: o Japão saindo do século XIX como uma marca única, ética e socialmente superior de capitalismo de “stakeholders” [com as empresas concentradas em contribuir para o desenvolvimento de toda a sociedade], cujas qualidades ressoam com força até hoje. 

É uma mitologia cômoda que a Toshiba, por meio de suas maquinações épicas com o governo para suprimir os direitos dos acionistas, pode ter acabado de destruir. 

Talvez o desafio mais espinhoso no relatório de 147 páginas sobre a Toshiba, divulgado na semana passada por um comitê independente de investigadores que analisaram a assembleia anual de acionistas do ano passado, seja concluir quem se sai pior. A escolha inclui a administração da Toshiba, o Ministério da Economia, Comércio e 

Indústria (METI), o famoso ex-diretor de investimentos do fundo de pensão do Japão, de US$ 1,6 trilhão em ativos, Hiromichi Mizuno, possivelmente o primeiro-ministro Yoshihide Suga e, o que é mais grave, a imagem mundial do Japão como destino de investimentos. Nobuaji Kurumatani, que pediu demissão do cargo de CEO da Toshiba em abril, provavelmente tem uma vantagem. 

Além disso, a questão realmente embaraçosa é se os últimos seis meses de uso intensivo de slogans e aparente reforma, durante os quais o Japão tentou convencer o mundo de seu compromisso com a governança e a gestão, foram o blefe que os pessimistas sempre temeram que estivesse sob os sinais superficiais de progresso. 

O documento, rico em vilões, eviscera a colaboração entre o governo e a administração da Toshiba, numa movimentação em que ambos pareciam ver os acionistas ativistas e os mais barulhentos como inimigos. 

A assembleia geral de acionistas de 2020 da Toshiba, conclui o relatório, não foi nada justa. Um conluio tentou fazer grandes acionistas mudarem de posição numa votação da qual dependia a sobrevivência de Kurumatani. Um executivo, diz o relatório, pediu ao Ministério da Economia, Comércio e Indústria (Meti, na sigla em inglês) para “surrar” os acionistas ativistas em seu nome. Outro destacou a maneira como os fundos estrangeiros estavam “assustados” com as autoridades japonesas e como isso poderia ser usado como arma contra eles. 

O relatório sugere que autoridades do Meti acreditaram que o poder sobre os ativistas estrangeiros seria possível por meio da Lei de Controle Internacional de Comércio e Câmbio de Moedas Estrangeiras – cuja revisão em 2019 o “Financial Times” alertou que poderia ter esse efeito. Uma carta posterior ao “Financial Times”, do vice-ministro de 

Finanças para Assuntos Internacionais, assegurou aos leitores do jornal de que os ativistas eram bem-vindos para colaborar com as autoridades japonesas no aumento do valor corporativo. 

A investigação, que só aconteceu porque os acionistas a forçaram, é incriminadora de uma maneira que os relatórios japoneses raramente são: desonestidade, subterfúgios e hipocrisia surgem como os culpados onde normalmente a incompetência, o corporativismo e as estruturas hierárquicas que não permitem questionamentos são os culpados. Numa iniciativa sem precedentes, quatro membros do conselho de administração da Toshiba divulgaram um comunicado descrevendo o relatório como “surpreendente, desapontador e, em algumas partes, muito perturbador”. 

Conforme observaram os quatro, a exposição detalhada de irregularidades pelo relatório representa um contraste doloroso com a investigação interna original da Toshiba sobre o caso – um acobertamento feito para parecer uma aula sobre como deixar os interesses dos acionistas de lado e desprezar a governança corporativa. 

Por tudo isso, o relatório é um documento cujo raio de alcance explosivo depende do observador. Para aqueles que veem suas constatações como específicas de uma situação corporativa extraordinária, e que já achavam que a Toshiba era uma história de horror irremediável em governança, o ar está cheio de evidências incontestáveis. Para aqueles que há muito suspeitavam que o Meti está disposto a interferir e até mesmo conspirar, isso pouco serve para amainar as preocupações de que o ministério poderia agir de maneira parecida com outras companhias japonesas se achar necessário. Não é difícil imaginar Carlos Ghosn, que há muito alega que o Meti está entre os conspiradores que precipitaram a sua prisão em 2018, usando esse relatório para reforçar sua convicção. 

Mas mais uma vez a grande tentação é ver esse caso todo como relevador de uma verdade mais ampla: a de que as atitudes fundamentais do Japão corporativo, e das autoridades do governo mais engajadas diretamente com ele, em muitos casos se movimentaram apenas minimamente no sentido de dar mais atenção aos acionistas. 

Esta conclusão, apesar de toda a sua negatividade, poderá acabar sendo uma coisa útil, conforme disse um dos maiores acionistas da Toshiba, à medida que o relatório e sua natureza incendiária poderão se tornar catalizadores de uma mudança real. O risco em torno do longo caminho de penúria da Toshiba, que começou com um escândalo contábil em 2015 e levou a companhia à beira de um colapso poucos anos depois, sempre foi o de ser tratado como um caso fora do comum, em vez se ser colocado no mesmo espectro de fraca governança de grande parte do Japão corporativo. 

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/06/15/relatorio-incendiario-pode-enfim-mudar-o-japao-corporativo.ghtml

Comentários estão desabilitados para essa publicação