Pensando um setembro verde: reflexões sobre a mobilidade (Parte 1)

Carlos Frederico Lucio

Recentemente, numa atitude ousada da atual administração municipal, São Paulo vem vivenciando um dos mais significativos avanços na construção de um espaço urbano de melhor qualidade: a implementação da primeira malha cicloviária de forma consistente e significativa. Uma demanda antiga da população, esta iniciativa requer dos gestores municipais muita coragem porque, seguramente, têm que lidar com medidas antipopulares que implicam em uma alteração substancial nos esquemas simbólicos já consolidados de uma sociedade para a qual o carro é não somente meio de locomoção mas sinônimo (quase sempre ilusório, diga-se de passagem) de conforto e qualidade de vida. Além, claro, de símbolo de status social. Mais do que propor uma alteração do espaço urbano, trata-se de uma revolução cultural. E isso, é o mais difícil e desgastante. O custo não está sendo baixo (e não falo de custo financeiro) mas se o está enfrentando com coragem e determinação. Principalmente quando estamos falando – temos que reconhecer este diagnóstico pouco simpático – de uma sociedade acostumada a reclamar muito e a fazer pouco. E mais: uma sociedade igualmente habituada  a pensar que o esforço para a mudança sempre tem que vir do outro, não de mim! Não é à toa que este assunto vem levantando reações mal humoradas acirradas, principalmente dos seus setores mais conservadores. Finalmente, alguém teve coragem de, cumprindo o plano diretor da cidade, colocar o problema na mesa e provocar essas mudanças necessárias (mas que ninguém quer fazer).

Não quero agora entrar nesta polêmica instaurada (e necessária – diga-se de passagem), até porque, como tudo o que diz respeito à realidade, possui uma contradição básica entre erros e acertos. Vou fazê-lo mais à frente. Em momentos assim, sempre me vem à mente uma frase da Elis Regina da qual gosto muito, em uma entrevista ao programa Ensaio da TV Cultura: nós cometemos “zil” erros; mas só erra quem está tentando fazer alguma coisa. E, como tudo o que se faz, os erros têm que ser revistos e ajustados e os acertos aprimorados. O que desejo é, a partir da polêmica instaurada, elaborar, nas próximas semanas, uma breve e livre reflexão sobre os vários aspectos trazidos pela questão da “mobilidade urbana” e que fazem parte do pacote proposto por um movimento que, desde fins da década de 1990, foi ganhando escala mundial: O Dia Mundial Sem Carro.

Num mundo acostumado a transferir para a esfera do Estado a responsabilidade pelo gerenciamento (e, consequentemente, pela busca de solução dos problemas) este é mais um movimento que vem colocando na pauta dos moradores das grandes cidades uma revisão sobre o papel de cada um nesse processo naquilo que concerne à melhoria da qualidade de vida como um todo: mobilidade, lazer, saúde, poluição (aérea e sonora, principalmente), estresse, crise de energia etc. O automóvel, como bem nos lembram James Womack, Daniel Jones e Daniel Roos (“A máquina que mudou o mundo”), talvez seja o filho da revolução industrial que mais trouxe mudanças significativas na vida privada das pessoas com consequências para o espaço público. Numa perspectiva antropológica, diria que redefiniu o próprio homem: reelaborou as cidades, aproximou distâncias, construiu um estilo de vida, determinou a velocidade de uma era, as relações com as pessoas, com o trabalho, com o lazer. No entanto, o inchaço dos grandes centros potencializou esse processo, trazendo-nos, em mais esta esfera, uma relação adicional de dependência (frente a tantas outras), quase uma verdadeira adicção. E, como todo adicto, experimentamos uma resistência incrível em nos libertar. Quero deixar claro que, até pela escolha do verbo (libertar-se e não livrar-se), não pretendo aqui fazer uma demonização maniqueísta do automóvel. Eu seria um cavernário platônico se caísse nessa armadilha da ingenuidade. Pelo contrário, como tudo o que criamos, o problema (quando existe) não está na coisa em si mas na relação que estabelecemos com ela. E sobre isso, é preciso pensar. Aberto ao debate, vou procurar manter uma criticidade na reflexão, tentando caminhar por esta trilha sujeita às contribuições dos leitores. Como o tema é complexo e o espaço de um blog é curto, vou fazê-lo em drops de pontos bons para pensar. Sem a pretensão de exauri-lo.

Em vários países do mundo, setembro é um mês dedicado a se pensar questões relativas à mobilidade urbana. Isso se deve, principalmente, ao fato de que no dia 22 deste mês é celebrado o “Dia Mundial Sem Carro” e, na Comunidade Europeia, a “Semana da Mobilidade” (que vai de 16 a 22). Para nós, no hemisfério sul (e mais ainda no Brasil), isso ainda ganha um significado maior: por ser o mês de início da Primavera (estação muito ligada ao imaginário ecológico) e, talvez por isso, o mês dedicado às questões ambientais (sendo o dia 21, dedicado à “Àrvore”) é um momento fértil para se propor reflexões a respeito do tema.

Uma rápida pesquisa revela uma inconsistência nas explicações do porquê o dia 22 de setembro foi escolhido como o “O dia mundial sem carro”, uma iniciativa que teria ocorrido em Reykjavik, Islândia, em 1996, mas que se consolidaria a partir de um evento ocorrido em La Rochele (França), em 1997 (ou 1998 – as fontes variam quanto a isso), espalhando-se rapidamente por várias cidades europeias. Estas iniciativas, de longe, foram as pioneiras.(1) Várias crises mundiais que já apontavam para a escassez de combustível (a começar pela Guerra de Suez, em 1956, que comprometeu o abastecimento de petróleo na Europa, vindo o Oriente Médio por aquele canal; e também a grande crise mundial do petróleo em 1973) e que mobilizaram várias cidades europeias com o objetivo de buscar alternativas ao transporte motorizado, principalmente aquelas dependentes do petróleo.

Fato é que estas iniciativas, alimentadas pela preocupação com o aquecimento global, níveis alarmantes de poluição, a crise de combustível, a superpopulação em alguns centros urbanos, congestionamentos crescentes – sem falar no crescente sedentarismo e problemas de saúde dele decorrentes – englobadas no grande debate sobre qualidade de vida nas cidades fez com que se tornassem, na virada do milênio, um movimento em escala mundial. E, ao que tudo indica, sem volta!

Aqui no Brasil, ela só vai chegar em vários grandes centros no início do milênio, em 2001 (com adesão de cidades como Vitória, Porto Alegre, Belo Horizonte entre outras). Em São Paulo, especificamente, ela só terá início em 2004, ganhando mais força no ano seguinte (considerado por alguns como o efetivo ano de adesão da cidade) até que, finalmente, é incorporada no seu calendário oficial (com apoio institucional) a partir de 2007. O curioso é que, apesar de já ter completo mais de uma década, as iniciativas de mobilização nesse campo ainda se coloca de modo muito tímido, principalmente no que diz respeito à sua real incorporação pelo poder público.

Se nos lembrarmos que na trilha do mote das passeatas de 2013 (questionamento da aumento das passagens dos ônibus urbanos) esteve fortemente uma crítica sobre a qualidade da mobilidade como um todo, ainda estamos muito longe de repensar nossa relação com a locomoção. E isso vale não somente para a esfera privada mas, principalmente, para a pública. Muito se discutiu. Pouquíssimo se fez. E, pior, o que se está fazendo está muito mais sujeito às críticas das pessoas do que a contribuições efetivas para que seja aprimorado. A resistência que a implementação das ciclovias em São Paulo vem enfrentando é um sinal muito evidente disso. Óbvio que esta é uma medida que terá que alterar hábitos, provocar mudanças de comportamento. Isso em várias esferas. Afinal, onde as pessoas que dizem que apoiam as ciclovias mas reclamam de sua instalação querem que elas sejam implementadas? Na subsolo, na rede de esgoto, no éter aristotélico da estratosfera? Sua implementação é concreta e para que ocorra é necessário uma alteração global. Seu principal efeito imediato é alterar o espaço de ocupação do carro. E isso, claro, implica na alteração do comportamento das pessoas como um todo (e não falo apenas de motoristas não). É preciso uma leitura crítica das ações do poder público. Mas é preciso que isto seja acompanhado de uma real vontade de abrir mão de um estilo de vida habitual para incorporar novas perspectivas e práticas. Isso dá muito trabalho.

E para não pensarmos que isso é uma exclusividade brasileira, é só lembrar que, entre outras cidades, NYC teve que enfrentar este desafio há alguns anos, quando resolveu implementar uma malha cicloviária que hoje beira os 600 km, segundo especialistas, o que resultou num enorme estardalhaço por parte de alguns. Hoje, passado um tempo, esta mudança foi incorporada aos hábitos das pessoas e as avaliações indicam uma grande adesão e apoio.

Em suma, esta mudança requer que seja repensada nossa relação com a cidade que queremos; demanda sair da ambiguidade entre o desejado (aquilo que imaginamos como ideal) e o efetivamente concreto (o que é preciso e possível ser feito). Uma reorganização da perspectiva de vida no espaço urbano.

Brincando com uma metáfora da época das manifestações de 2013, parece que o gigante se levantou, andou um pouco e agora está retido em algum congestionamento existencial. (Continua.)

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