Países aceleram leis sobre remuneração por conteúdo

Anos depois das primeiras discussões sobre o impacto das plataformas digitais sobre o jornalismo profissional, diversos países estão acelerando a elaboração de leis para fazer com que as “Big Techs” paguem às empresas de comunicação para exibir notícias ou fragmentos de textos noticiosos, como títulos e resumos, em seus serviços de busca ou redes sociais. 

A Europa tomou a dianteira no esforço regulatório. A movimentação baseia-se na Diretiva de Direitos Autorais no Mercado Único Digital, um conjunto de regras pan- europeias negociado entre setembro de 2016 e maio de 2019 para garantir condições equitativas entre o setor criativo e as plataformas on-line, como Google e Facebook. 

Os países da União Europeia tinham até junho deste ano para transformar as normas em leis nacionais, mas o cronograma atrasou em muitos deles, em parte devido à pandemia. Ainda assim, a movimentação ocorrida até agora mostra o impacto do novo arcabouço no mercado de internet. 

Em julho, a França, primeiro país a transformar a diretiva em lei, atraiu atenção internacional ao multar o Google em € 500 milhões (US$ 590 milhões), a maior multa já imposta pela quebra de regras de competição no país. 

Autoridade de Concorrência francesa disse, na ocasião, que o Google se recusara a negociar “de boa-fé” com os produtores de notícias e deu prazo de dois meses para a empresa fazer propostas, sob pena de multa adicional de até € 900 mil por dia. O Google apelou da decisão no começo deste mês. 

Para analistas internacionais, o Google não teria dificuldades para pagar a multa. Só no trimestre fiscal mais recente, encerrado em junho, a Alphabet, que controla a empresa, teve lucro líquido de US$ 18,5 bilhões – 166% maior que o do mesmo período do ano anterior. A receita global foi de US$ 61,9 bilhões. 

O problema para a companhia é outro: o receio de ter de lidar com diferentes exigências em cada país, à medida que as leis são aprovadas, com mais riscos a seu modelo de negócio. 

A Alemanha chegou ao terceiro projeto de lei para adotar a diretiva europeia, que é ampla e também envolve música e audiovisual, entre outros produtos culturais. Os alemães discutem os critérios de “uso mínimo”, que definiriam os limites para usar conteúdo na internet sem pedir licença ou pagar por ele, como vídeos ou trechos sonoros de até 15 segundos e/ou 160 letras de um texto. 

Na Espanha, uma das questões centrais é o artigo 15 da diretiva, que trata da remuneração das companhias jornalísticas. Os espanhóis tentam resolver o conflito entre a diretriz europeia, que permite aos grupos de mídia negociarem individualmente seu conteúdo, e a lei espanhola já existente, que exige que isso seja feito coletivamente. 

O Reino Unido, que deixou a União Europeia em dezembro do ano passado, já anunciou que não vai implementar o regulamento, embora o governo esteja atento ao assunto. Em maio, criou a Unidade de Mercados Digitais (DMU, na sigla em inglês), que vai cuidar das relações entre plataformas de internet, criadores de conteúdo e anunciantes. Medidas para remunerar a exibição de notícias não estão descartadas, embora isso não esteja previsto no curto prazo, disseram autoridades britânicas. 

A diretiva europeia é considerada a maior reforma, em 20 anos, sobre o entendimento do papel das “Big Techs” frente aos direitos autorais. 

“[A diretriz] muda o que foi estabelecido no início dos anos 2000, quando o Parlamento Europeu conferiu às plataformas digitais a figura conhecida como ‘porto seguro’ ”, diz Sydney Sanches, presidente da Comissão Especial de Direitos Autorais do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). 

Há duas décadas, o rápido avanço dos serviços on-line e os benefícios proporcionados ao consumidor ajudaram as plataformas digitais a obter aval para agregar conteúdo de maneira crescente, sem que precisassem pagar por ele ou fossem responsabilizadas pelo que transitava em seus espaços. 

Prevaleceu o entendimento de que impor limites prejudicaria a evolução da internet, então marcada por empresas nascentes e modelos de negócio em formação. Para se ter uma ideia, no ano 2000, a Amazon tinha quatro anos de existência, e o Google, dois. Facebook e YouTube nem existiam. Só seriam criados em 2004 e 2005. 

“O discurso começou a mudar na década passada, depois de 15 anos, porque essas empresas cresceram muito, com boa parte da receita vinda da transmissão de conteúdo protegido”, diz Sanches. 

A diretriz europeia é um ponto de ruptura porque retira o princípio de “porto seguro” e reconhece a necessidade de contrapartida financeira em relação aos direitos de criação artística, diz o advogado. 

Essa proteção foi estendida às notícias por meio dos chamados direitos conexos ou análogos à produção artística. “É um rearranjo de conceitos muito bem-vindo. A Europa é o grande exemplo de proteção de obras artísticas e o movimento vai se espalhar”, afirma Sanches.

A Austrália tornou-se pioneira ao promulgar, em fevereiro, uma lei que obriga as “Big Techs” a negociarem acordos de pagamento com as empresas jornalísticas. Se isso falhar, a legislação prevê a nomeação de um árbitro indicado pelo governo para fazê- lo. 

Diferentemente da Europa, porém, os australianos usaram a lei antitruste para aprovar o novo código, em vez da legislação de direitos autorais. 

No início do ano, o Google ameaçou deixar a Austrália e o Facebook chegou a retirar as notícias de seu serviço local, provocando um apagão noticioso de alguns dias. 

Mas com a iminência de a lei entrar em vigor, as duas empresas acabaram negociando com os principais grupos de mídia da Austrália, inclusive a News Corp, do magnata Rupert Murdoch, apontada como líder da campanha para aprovar as regras. 

Recentemente, um grupo de companhias australianas de mídia veio a público para dizer que o Facebook se recusara a negociar com elas, sob o argumento de que seu conteúdo era inapropriado para o serviço Facebook News. 

Na Austrália, para se credenciar ao pagamento, as empresas precisam se registrar no órgão governamental que supervisiona a área de mídia e comprovar que produzem, predominantemente, “notícias de interesse público”. Nem todos os reclamantes estavam registrados. 

O modelo australiano – na linha “negocie ou alguém negociará por você” – é uma das duas vertentes em estudo no Canadá, onde o governo também quer o jornalismo profissional seja remunerado. 

A outra seria criar um fundo independente para o qual as plataformas digitais contribuiriam com base numa porcentagem da receita obtida no país. Os recursos seriam, então, distribuídos às empresas de mídia. 

Pressionadas, as grandes plataformas vêm fechando acordos individuais, sob programas de incentivo ao jornalismo. Essa abordagem, no entanto, tem sido criticada por causa da assimetria entre os dois lados na mesa de negociação. 

Os críticos também dizem que falta transparência sobre a escolha dos parceiros e os critérios de pagamento. “Para não ocorrer regulação, elas estão se antecipando e fazendo ofertas em vários países”, diz Sanches, da OAB. “Isso arrefece a discussão política.” 

A questão dos acordos individuais é considerada particularmente sensível no caso das empresas de notícias regionais e locais, que estão desaparecendo rapidamente. 

Na Dinamarca, cerca de 30 empresas, entre jornais, redes de TV e startups, juntaram forças, em junho, para negociar coletivamente com o Google e o Facebook. Baseada na diretiva europeia, a iniciativa foi a primeira no continente a estabelecer uma frente coletiva ampla para enfrentar o que os alguns chamam da política de “dividir para conquistar” das plataformas.

“Mesmo nos Estados Unidos, que se notabilizou por uma espécie de ‘laissez-faire’ [sobre o jornalismo no ambiente digital], as coisas estão mudando”, afirma o professor Rosental Calmon Alves, fundador do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas da Universidade do Texas. “A Europa sempre teve uma visão de Estado sobre apoiar o jornalismo, algo que os EUA rejeitavam. Mas agora se fala abertamente em subsídios governamentais para o setor no país.” 

Para as “Big Techs”, decisões relativas à remuneração das notícias não são a única preocupação no front regulatório. 

Paralelamente a essa questão, diversos países estão discutindo ações que vão de processos por abuso econômico – e a criação de regras para evitar esse risco – até a apuração da responsabilidade das plataformas na disseminação de “fake news”. São pontos que podem definir as bases da internet no futuro. 

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/09/24/paises-aceleram-leis-sobre-remuneracao-por-conteudo.ghtml

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