Pagliacci: Se non è vero…

Guilherme Mirage Umeda

A ópera Pagliacci, do compositor italiano Ruggiero Leoncavallo, é uma excelente via de acesso ao mundo da música lírica. Trata-se de obra curta – aproximadamente uma hora de duração – e  intensa em sonoridade e drama; além disso, apresenta ao espectador uma das árias mais famosas do repertório, Vesti la giubba,  talvez dividindo com Nessun Dorma (esta composta por G. Puccini para Turandot) o topo do Billboard operístico. Não é descabido falar de Billboard quando se trata destas canções: Vesti la giubba rendeu a Enrico Caruso a primeira gravação a vender mais de um milhão de cópias, isso em 1904. Ela divide com muitas canções populares a familiaridade de nossos ouvidos, consagrando-se como um daqueles dados inescapáveis de uma cultura global. Vez por outra, faz sua entrada em filmes, propagandas ou paródias (talvez seja o preço do sucesso…).

Pagliacci se inscreve na história das óperas como uma das mais ilustres representantes do Verismo, movimento cuja origem geralmente se atribui a Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni. Não por acaso, estas duas óperas são quase sempre montadas conjuntamente, em uma dobradinha que o mundo lírico apelida de “Cav & Pag” – a propósito, as récitas previstas para outubro deste ano no Theatro Municipal de São Paulo reeditam a dupla.

O Verismo teve papel fundamental numa espécie de revitalização da ópera italiana, por meio de um profícuo diálogo entre a escrita lírica e as condições históricas de seu tempo. O movimento é marcado pela temática atrelada à vida cotidiana, substituindo no palco os personagens míticos por gente comum, a realeza pelo proletariado. Inspirando-se nos movimentos literários do Realismo e do Naturalismo, propôs-se a retratar em seus enredos a realidade dura de uma vida pública de intensa agitação política, transformações econômicas e tensões de classe. Sai de cena a fantasia idealizada, entra a vida como ela é, em toda sua trivialidade, desordem e morbidez.

É sempre estranho pensar na temática da autenticidade e da verdade no contexto do teatro lírico. Afinal, há muito pouco de natural ou mimético no espetáculo operístico: a ação teatral da ópera e o modo da fala (tanto na forma do canto quanto no texto) em nada se assemelham à vida fora do teatro. Então, como conceber na ópera uma postura verista (lembrando que o nome do movimento faz referência ao que é vero, ou verdadeiro)? Em Cavalleria, o Verismo fervilha no cenário bucólico, nas personagens camponesas, na história passional e crua, na musicalidade direta e sem floreios. Mas em Pagliacci, verdade e ficção se entretecem em múltiplas camadas, trazendo à tona um jogo que pertence, em última instância, a toda obra artística. Qual é, afinal, a fronteira entre arte e vida? O que há de verdade na obra, e como esta verdade possivelmente se relaciona a uma verdade do mundo?

De partida, a própria história da concepção de Pagliacci esbarra nesse debate. Alegadamente, Leoncavallo baseou seu libreto em um fato verídico por ele presenciado na infância: trata-se de um assassinato passional com contornos de ficção, cujo julgamento ficou sob responsabilidade de seu pai, na corte de justiça na Calábria. Entretanto, o escritor francês Catulle Mendès acusou o compositor de plágio, pelas semelhanças que o enredo da ópera guardava com sua peça La Femme de Tabarin. Mais do que uma disputa de autoria, a contenda põe em jogo não apenas a criatividade de dois artistas, mas também a força dramática de uma peça ficcional contra a de uma história verídica. Mas Mendès acabou abrindo mão do processo. Segundo o próprio Leoncavallo, isso se deu quando o dramaturgo se deu conta de que enredos parecidos à de sua peça já tinham sido aproveitados em outras obras mais antigas, algumas das quais se diziam baseadas em fatos reais! A vida imita a arte que imita a vida que imita a arte…

Adentrando no ópera, Leoncavallo demonstra grande consciência do jogo que propõe. Começa com um prólogo personificado em Tonio (vestido como o tolo Taddeo), no qual afirma que o autor buscou na peça retratar uma fatia da vida. Sua única máxima é: “o artista é um homem, e aos homens deve escrever. A verdade é a sua inspiração”. Portanto, as lágrimas, o riso, o amor e o ódio representados em nada diferem daqueles que tomam o ser humano na vida real. Apela para que consideremos não as fantasias histriônicas com que se vestem, e sim suas almas, “pois são homens de carne e osso, e que deste mundo órfão, como vocês, respiramos o mesmo ar”. Que uma personagem representando ainda outro papel venha esclarecer ao público a dose de realidade imbuída na peça é revelador das intenções de Leoncavallo.

Mas nada poderia expor de maneira mais convincente a díade ficção-realidade do que o magistral desenrolar do segundo ato, onde há uma encenação clássica de “teatro dentro do teatro”. No expediente metalinguístico, Leoncavallo reforça sua tese de que por trás da trama ficcional há um jorro de verdade, de que a audiência incauta para quem a encenação não passa de “teatro” haveria de se surpreender com a obscuridade das regiões fronteiriças entre vida e arte. Não porque vida e arte se confundem, mas porque a verdade expressiva da arte sempre tem algo a nos dizer sobre a verdade da vida.

“Teatro dentro do teatro” do mesmo modo que Woody Allen propõe o “cinema dentro do cinema” em A rosa púrpura do Cairo. Nesse caso, um sarcasmo mais nítido do cineasta cinde irremediavelmente a vida real da ficcional, mas para todos os efeitos retorna a um mesmo refrão: a arte propõe, como bem sintetizado por Rogério Almeida em Cinema e contemporaneidade, “novas realidades, não como alternativa (ideológica, metafísica ou de qualquer outra ordem) a esta realidade aqui – que ao cabo é a única que existe – , mas como possibilidade de compreendermos a própria realidade, de nos situarmos  nela, de aprová-la, pois, em última instância, é a única que temos”. As formas como essa mensagem é passada são diferentes – em alguns pontos opostas –, mas trazem a conclusões parecidas.

Por fim, vale lembrar que o mesmo Woody Allen cita Pagliacci em um de seus mais importantes filmes: Zelig, de 1983. Nele, o personagem título assemelha-se a um camaleão, deixando o mundo atônito com sua característica única de assimilar identidades. Novamente, estamos diante de um caso de obra de arte que emula o real como mero efeito. Trata-se de um filme claramente ficcional – inclusive pelo absurdo de seu enredo – mas cuja linguagem é tipicamente documental, mesclando no material fílmico depoimentos de personalidades reais (como Susan Sontag e Irwing Howe), entrevistas inventadas e filmagens históricas. Na tentativa de se descobrir a identidade de Zelig, duas fotografias são encontradas entre seus pertences. Em uma delas, ele encarna… Pagliaccio! A fotografia do filme é montada sobre imagem famosa de Caruso representando o papel de Canio, chefe da trupe que encena o teatro dentro do teatro de Leoncavallo. Um verdadeiro jogo de espelhos se desenha aqui: Zelig emula Pagliaccio, representado na realidade por Caruso, vestido de Pagliaccio, que é o personagem que Canio interpreta no espetáculo dentro de uma ópera de Leoncavallo, que baseou sua trama em um evento factual! O avesso do avesso do avesso do avesso.

O que é, afinal, isso que a arte apresenta? Talvez, a síntese de Picasso continue sendo uma maneira precisa de desfazer o nó: “a arte não é a verdade. A arte é uma mentira que nos ajuda a entender a verdade”.

“Pagliacci”: décimo encontro do Ciclo Ópera e Paixão. Os professores Pedro de Santi, Celso Cruz e Guilherme Umeda apresentarão e comentarão a obra, que será encenada no Theatro Municipal de São Paulo no mês de outubro de 2014.

Dia 2 de outubro, às 16h30. Vale ACOM.

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