Foi a única perturbação em um dos eventos mais atentamente coreografados na China: o ex-líder máximo do país Hu Jintao foi subitamente conduzido para fora da cerimônia de encerramento do quinquenal congresso do Partido Comunista Chinês.
O congresso, no qual os líderes chineses são ungidos à função, é o evento político mais importante do partido aferrado ao poder. Cada detalhe — desde o resultado de suas eleições até a maneira de servir o chá — é planejado. Nada ocorre fora do roteiro. Nada fora do roteiro é permitido ocorrer.
Mas, este ano, ocorreu.
Os cerca de 2 mil delegados do congresso tinham acabado de depositar seus votos para eleger o prestigioso Comitê Central. Então, dois homens conduziram Hu — que pareceu relutante em deixar-se levar — para fora do Grande Salão do Povo, em Pequim.
O momento, capturado em vídeo por jornalistas que tiveram entrada permitida no recinto minutos antes, ocasionou dúvidas e especulações desenfreadas. Hu, de 79 anos, foi acometido por um problema de saúde, conforme noticiaram posteriormente os meios de comunicação estatais da China? Ou foi expurgado em uma exibição dramática pelo atual líder, Xi Jinping, para que o mundo inteiro visse?
“Foi um episódio estarrecedor — mesmo na época de Mao, não se via nenhuma perturbação dramática como essa no congresso”, afirmou o especialista em política chinesa Victor Shih, da Universidade da Califórnia, em San Diego.
O mundo poderá jamais saber a resposta, dado o sigilo absoluto no alto-escalão da política chinesa. Mas a decupagem das imagens do episódio fornece alguns detalhes adicionais e contexto a respeito do tão esquadrinhado momento.
Antes da retirada
Nos minutos que antecederam a retirada de Hu, ele parece estar pegando um documento sobre a mesa da tribuna dos líderes maiores e anciões aposentados.
O homem à sua esquerda, Li Zhanshu, que estava deixando a terceira posição mais elevada de autoridade do partido, intervém rapidamente, cobrindo o papel com uma pasta vermelha. Depois ele afasta o documento de Hu, cochichando-lhe algo ao ouvido.
Não ficou claro o que era esse documento, mas todas as autoridades pareciam ter documentos. A foto de uma das páginas, registrada posteriormente, mostrou uma lista de nomes acompanhados da expressão “Comitê Central”.
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O congresso estava prestes a anunciar o novo Comitê Central, o que deixaria claro que Xi havia expulsado elementos percebidos como moderados em favor de seus apoiadores leais. Os líderes mais graduados do partido e os anciões aposentados têm grande influência sobre a seleção.
Os delegados ainda não haviam votado emendas à constituição do partido, aprovando o relatório de Xi sobre o progresso nos cinco anos anteriores, nem o relatório de disciplina interna. As emendas, reveladas posteriormente, reafirmaram a importância de Xi como “cerne” do partido.
Momentos da retirada
Cúpulas anteriores do partido foram palcos de manobras políticas e humilhações de ex-líderes. Em 1959, o partido adotou formalmente uma resolução denunciando Peng Dehuai, um oficial militar de alta patente, após ele criticar políticas econômicas de Mao Tsé-tung. Durante a Revolução Cultural, muitos líderes, incluindo o pai de Xi Jinping, Xi Zhongxun, foram expurgados ou humilhados publicamente. Mas esses momentos ocorreram antes da era da internet — e foram claramente intencionais.
Não se sabe se a retirada de Hu foi planejada, e muitos analistas desaconselharam conclusões precipitadas. O aparente caos nos momentos que se seguiram levara muitos a considerar que a cena não foi roteirizada.
Xi olha para a lateral do salão. Um assessor se aproxima de Xi, conversa com ele e toca em uma folha de papel com a mão direita. O assessor se curva, então na direção de Hu — que assistiu à interação anterior com o canto dos olhos, parecendo ouvir com atenção o que estava sendo dito.
Enquanto Xi observa, o assessor pega no braço direito de Hu, como se tentasse retirá-lo do assento. Hu resiste, juntando o braço ao corpo. O homem tenta, então, levantar o ex-líder máximo da cadeira puxando-o por trás, pelas axilas, mas novamente fracassa em retirá-lo. Hu tenta, então, pegar o papel diante de Xi, que segura na mesa.
Quando o assessor finalmente consegue persuadir Hu a se levantar, Li Zhanshu, a autoridade n.º 3, começa a se levantar parecendo querer interceder na situação. E a autoridade ao seu lado — Wang Huning, então n.º 5 do partido — puxa discretamente Li de volta ao assento.
Li e Wang protagonizaram uma troca de guarda no ápice do poder chinês: o Comitê Permanente do Politburo, anunciado no dia seguinte.
Li chegou à idade de aposentadoria — e sairia de qualquer maneira. Wang é o principal teorista do partido e serviu como conselheiro e ideológico de Xi e Hu; foi promovido a n.º 4 na hierarquia do poder e é considerado próximo a Xi.
Com o Comitê Permanente do Politburo preenchido com seus aliados, Xi enfrentará pouca resistência à sua agenda, que inclui impulsionar a segurança nacional e reformular a ordem global para atender melhor aos interesses de Pequim. Nenhum dos novos líderes tem experiência ou juventude suficiente para ser considerado um possível sucessor de Xi.
Quando dois assessores começam a retirar Hu de seu assento, o ex-líder para e diz algo a Xi, que assente com a cabeça brevemente, sem se virar completamente para olhar o antecessor.
Hu então coloca a mão esquerda no ombro de Li Keqiang, o primeiro-ministro chinês. Li também assente com a cabeça e também não vira completamente para trás.
O primeiro-ministro é visto há muito como aliado e protegido de Hu. Ele ascendeu nos quadros do partido por meio de funções de liderança na Liga da Juventude Comunista, organização do partido que Hu presidiu no passado.
Pelo menos duas outras pessoas sentadas à tribuna frontal possuem antigas alianças com Hu: o n.º 4 demissionário, Wang Yang, e o vice-primeiro-ministro Hu Chunhua, que também foram membros da Liga da Juventude Comunista.
A nova escalação de altas autoridades, revelada no dia seguinte, excluiu o trio percebido como protegido de Hu, rompendo uma tradição de equilibrar diferentes facções do partido na liderança.
Quando Hu é conduzido para fora do salão, ele passa atrás de outras 19 autoridades graduadas do partido sentadas à mesma longa mesa. Quase ninguém deu alguma indicação de que algo incomum estava ocorrendo. Algumas autoridades conversaram entre si no momento. A maioria fixou o olhar adiante.
Wu Guoguang, professor da Universidade de Victoria, no Canadá, que trabalhou como assessor de um ex-primeiro-ministro chinês, afirmou que prefere não especular sobre o que ocorreu. Mas disse que se surpreendeu com a gélida reação das autoridades.
“Aí estava Hu Jintao, o ex-líder máximo de seu partido, um homem que deu a tantos de vocês tantas oportunidades na política, e como vocês o trataram?”, disse o professor Wu em entrevista ao podcast da colunista Li Yuan, do Times. “Esse incidente demonstrou a realidade trágica da política chinesa e a ausência fundamental de decência e humanidade no Partido Comunista.”
Após a retirada
Depois da partida de Hu, a cerimônia de encerramento continuou, com seu assento vazio na tribuna frontal como único lembrete da perturbação. Para a maioria das pessoas na China, esse episódio poderá nunca existir. Os censores chineses limitaram os resultados de buscas para o nome de Hu em redes sociais a postagens de perfis oficiais, e nenhuma mencionou sua retirada. O programa de notícias da TV estatal mostrou Hu votando e posteriormente o assento vazio durante a cerimônia sem nenhuma explicação.
No fim da noite do sábado, a agência de notícias estatal Xinhua reconheceu pela primeira vez que Hu saiu do recinto, tuitando que ele “não se sentia” bem, e o levaram para descansar. “Agora ele está muito melhor”, afirmou o tuíte. Entretanto, o Twitter é bloqueado na China, e nem a Xinhua nem outro meio de comunicação estatal postou nenhuma explicação similar dentro do firewall chinês, o que alimentou mais especulações sobre o incidente.
Independentemente do que tenha acontecido, o simbolismo foi inequívoco. Um ex-líder máximo, historicamente a única pessoa com estatura para desafiar o atual líder, foi retirado de cena. Isso deixou apenas um ator sob o holofote: Xi, prestes a perpassar seu terceiro mandato como o líder chinês mais poderoso em décadas