Por Pedro de Santi
Na semana passada, o Nota Alta ESPM produziu um dossiê composto, inicialmente, por quatro artigos em torno da questão da “cura gay”. Novos artigos têm sido produzidos por outros colegas professores. Agora, discutimos o Estatuto do nascituro, projeto com a mesma procedência e espírito que o anterior e que teve uma primeira aprovação em seu trâmite.
No domingo, dia 2 de junho, houve a Parada GLBT. A partir daí, numa ação politicamente bem articulada, a chamada “bancada evangélica” agendou para segunda-feira a votação projeto da cura gay (sem sucesso, pois um dos membros da comissão pediu vista ao processo); na terça, houve uma passeata em Brasília contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo (na qual o projeto politico legítimo de eleger um presidente evangélico foi assumido); ao longo da semana, uma campanha do Ministério da Saúde tendo por alvo as prostitutas também foi barrada pela dita bancada e, por fim, nova polêmica foi lançada na quinta, com a aprovação numa primeira instância de um Estatuto do nascituro. Este último gerou reações importantes entre juristas e representantes dos direitos das mulheres.
Como toda questão, esta também pode ser analisada desde muitas perspectivas e possui muitos planos. Enumero alguns deles, desde meu ponto de vista.
Num primeiro plano, trata-se de uma força política expressiva e crescente, contando com o espaço conquistado por constituir a base aliada do governo (embora sustente posições opostas àquelas tradicionalmente assumidas pela presidente e seu partido). Todos de olho nas eleições para a presidência, governos estaduais e senado de 2014. Considero que este é o verdadeiro pano de fundo de toda a polêmica produzida: busca por visibilidade e adesão de parcelas mais conservadoras da sociedade.
Num outro plano, trava-se uma batalha semântica para tentar esconder os evidentes interesses envolvidos. Na segunda-feira, o proponente do projeto se mostrava indignado com a mídia secular, que impunha ao projeto a denominação ‘cura gay’. O novo disfarce da proposta é dizer que ela não propõe isto, mas a “proteção aos psicólogos que queiram acolher pacientes que desejem a reversão da homossexualidade”. Mas o disfarce deixa para fora a face que tentava esconder: a quem não saiba, a expressão ‘secular’ diz respeito àquilo que se situa no mundo, sujeito à passagem do tempo e distante do sagrado. Evidencia-se que os autores do projeto se identificam com o sagrado (como seus autoproclamados porta-vozes) por oposição ao mundo. O termo ‘reversão’ da homossexualidade também expõe o que se tentava esconder: a ideia de volta a uma naturalidade sexual que teria sido perdida. Como já discuti este equívoco pela perspectiva psicanalítica (e Carlos Frederico Lucio, pela perspectiva antropológica) no dossiê anterior, não retomarei os argumentos em contrário àquela posição.
É claro que não se trata da proteção dos psicólogos. Todo psicólogo não só pode como deve atender toda forma de sofrimento, mas ele não pode se aliar a uma demanda equivocada do paciente: a remoção específica de um desejo que o constitui. Ante a demanda de um paciente, não somos técnicos a serviço do cliente, mas profissionais com compromissos éticos baseados em conhecimento e cidadania. Da mesma forma, um médico não deve poder administrar quimioterapia a pacientes sem câncer.
Outra batalha semântica. Um expoente daquele movimento deu uma entrevista de grande repercussão recentemente à Marília Gabriela. Ela, sempre tão inteligente e bem informada, neste caso embarcou no campo semântico do entrevistado. Ele passou a defender que a homossexualidade seria um comportamento adquirido, com isto querendo dizer que ele pode ser transformado. Ela, querendo dizer que não era cabível o projeto de transformação, passou a defender que a homossexualidade fosse uma condição genética. A discussão foi toda levada sobre premissas falsas: não há relação de oposição e exclusão entre o que é inato e o que é adquirido; e o que seja adquirido não é, por isto, mutável. Tudo o que somos é constituído na interação de nossas pré-condições inatas e do ambiente simbólico no qual nascemos. Quase nada é exclusivamente inato ou adquirido. E, de toda a forma, aquilo que é constituído na primeira infância como comportamento passa a ser nossa constituição e não é removível, como argumentava o entrevistado.
O último plano que gostaria de apontar diz respeito à mais recente batalha semântica. Sob a bandeira da defesa da vida humana, evidencia-se claramente um retrocesso no direito das mulheres.
Para tentar entender o espírito que anima este discurso, vejamos: dois adultos do mesmo sexo não podem, em mútuo consentimento, se casar. Mas uma mulher estuprada e grávida estará automaticamente “casada” com o estuprador, na medida em que deixará de poder interromper a gravidez, terá o nome do estuprador no registro de nascimento de seu filho e, dele, receberá uma pensão.
Que concepção de família de deduz destas posições? Uma concepção que funda a família exclusivamente na reprodução. Não se inclui desejo, afeto, história, compromisso, projetos. E a mulher é então o instrumento desta concepção na redução de sua existência à condição de parideira. Não está em questão seu desejo e, segundo o novo estatuto, sequer seu consentimento. A “compensação” dada através da pensão do estuprador a vincula àquele que lhe impôs a violência. Ao estuprador é reconhecida a condição de sujeito; ele será responsabilizado pelo que fez. À mulher estuprada, não é reconhecida a mesma condição; a ela só cabe portar a vida deste modo concebida.
Um trauma é definido como a ausência ou impossibilidade de reagir a um dado estímulo. Num estupro, muitas vezes o elemento mais traumático não procede do ato sofrido, mas justamente na impunidade do autor ou do constrangimento sofrido pela mulher que se envergonha pelo que sofreu. Imagine-se a situação de uma mulher estuprada que engravide e se veja forçada a ter um filho com o estuprador, compartilhar a paternidade da criança com ele e estar vinculada a ele por uma pensão. Uma situação de terror.
Sabemos que as condições modernas de cidadania, autonomia e liberdade nascidas ao final do Renascimento chegaram muito antes aos homens que às mulheres. Passos importantes no sentido da constituição e garantia dos direitos de sujeitos do sexo feminino foram conquistados apenas nos últimos cento e poucos anos. O caminho para a condição de sujeito livre passa exatamente pela superação de condições naturais. Até pouco tempo atrás, uma mulher só era reconhecida como plena na medida em que realizasse seu “destino natural” de ser mãe. Ao longo do século XX, através do vencimento de muitas barreiras, as mulheres puderam adquirir certa liberdade com relação a esta associação de seu corpo com a natureza. Os métodos contraceptivos e o divórcio foram instrumentos essenciais nesta nova condição subjetiva. Como muito bem indicou Denise Fabretti, no primeiro artigo deste dossiê, um instrumento jurídico importante para esta emancipação foi criado ao se admitir que uma mulher estuprada que engravidasse por este ato, pudesse interromper a gravidez (até certo ponto específico do processo gestacional). Estava assim garantido o direito de um sujeito do sexo feminino, que a emancipava da condição de objeto sexual ou mídia reprodutiva. Da mesma forma, ela poderia ter a criança, caso assim o desejasse. Ser mãe passou a ser uma questão de opção e desejo, não condição sem qual a mulher estaria em falta para com sua natureza.
O que se tornou gritante pela ausência no Estatuto do nascituro foi a completa exclusão da outra vida envolvida no processo: a da mulher grávida. Em um texto de Cristiane Checchia para o Nota Alta ESPM, ela tratou de forma específica o quanto desde o Brasil colônia aquele discurso religioso não tem lugar específico nem para a mulher, nem para a homossexualidade feminina. Trata-se de um não lugar. É bastante notável que para, aquele discurso, tudo gira em torno do homem e do temor por sua degradação.
É uma questão polêmica e de definição imprecisa quando nasce uma vida humana, o ponto exato em que ela adquire direitos como os de toda pessoa. Pode ser no momento da formação do embrião, pode se considerar que espermatozoides e óvulos são já estruturas vivas, pode se pensar que seja quando determinada condição neurológica se constitui (em torno das 12 semanas de gestação), ou até quando o parto aconteça. É difícil mesmo encontrar este limiar nos quais se considere que células agregadas não são mais um apêndice do corpo de uma mulher e se configuram como seres humanos com plenos direitos. Daí a dificuldade das discussões sobre em que condições uma gestação pode ser interrompida. Independente disto, a discussão sobre a gestação concerne, no mínimo, a dois seres, não a um só.
Para concluir, quero ainda distinguir dois planos do debate. Num deles, há a discussão intrínseca a cada tema, por exemplo: faz sentido falar em um tratamento para a mudança de orientação sexual? Existem condições sob as quais é legítima a interrupção de uma gravidez? Em outro plano, a discussão é anterior: a posição adotada por alguns em coerência com seu sistema de valores pode ser imposta à totalidade da população sob a forma de lei? Se uma pessoa é contra o casamento entre homossexuais, ela não deve se casar com alguém do mesmo sexo; se ela é totalmente contra o aborto em qualquer circunstância, ela não deve fazer um aborto. Este é um valor essencial que será garantido à pessoa num estado democrático. As pessoas podem também difundir e pregar seus valores umas ante as outras. Daí a pretender impor a todos estes valores, vai uma grande distância. Isto configuraria uma ação fundamentalista, como aquelas que o ocidente costuma associar injustamente a todo o islamismo.
Disfarçar dogmas religiosos sob o discurso científico é uma prática de quase duzentos anos contra a qual já estamos- ou deveríamos estar- vacinados.