Novos governos na Europa têm excesso de dívida e pouca margem de manobra 

Os novos governos eleitos na Europa estão recebendo um cálice envenenado. Eles são escolhidos com a incumbência de promover mudanças, mas têm apenas meios limitados à disposição para levá-las a cabo.

A dívida pública está perto do maior nível em muitas décadas nos dois lados do Canal da Mancha, onde França e Reino Unido elegeram nos últimos dias seus novos parlamentos. Tanto na França quanto no Reino Unido, os gastos públicos e os déficits orçamentários em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) estão muito acima dos níveis anteriores à pandemia da covid-19. O crescimento econômico continua fraco, oscustos para que os governos captem dinheiro subiram e as demandas de gastos públicos, de militares a previdenciárias, são cada vez maiores.

Tudo isso, dizem economistas, indica que será preciso ter contenção fiscal — menos gastos públicos ou mais impostos. Os políticos, porém, não prepararam o eleitorado para isso. Ao contrário, sinalizaram a intenção de mais gastos. 

Na França, a Reunião Nacional (RN), de extrema direita, que ficou com a terceira maior bancada na eleição de domingo, propôs cortes generalizados de impostos e a reversão do impopular aumento da idade de aposentadoria aprovado pelo presidente do país, Emmanuel Macron, apesar do recente recuo das autoridades do partido em algumas dessas promessas. 

A Nova Frente Popular (NFP), aliança de esquerda que foi a mais votada na eleição, tem uma agenda ainda mais ambiciosa. Ela inclui congelar preços e um grande aumento no salário mínimo que exigiria gastar mais com remuneração e subsídios, ao mesmo tempo em que abre mão de arrecadação com impostos. O Parlamento dividido, se os diversos partidos não conseguirem chegar a um acordo para formar um governo, atrasaria qualquer esforço para conter a dívida nacional, segundo analistas. 

Nenhum partido francês discutiu como faria para reduzir um déficit público que deverá chegar a 5% do PIB em 2024 e já desencadeou procedimentos disciplinares da União Europeia (UE). Os rendimentos dos títulos públicos franceses decolaram nas últimas semanas, uma vez que os investidores reagiram alarmados à perspectiva de um endividamento público muito maior. Em maio, a agência avaliadora de risco de crédito Standard & Poor’s rebaixou a classificação da dívida soberana da França para “AA-”. 

Evitando escolhas difíceis 

No Reino Unido, o vitorioso Partido Trabalhista, eleito com uma maioria histórica, indicou a intenção de gastar mais em serviços públicos, inclusive no sobrecarregado Serviço Nacional de Saúde, embora as propostas concretas até agora tenham sido modestas. 

Recentemente, o centro de estudos londrino Institute for Fiscal Studies (IFS) acusou todos os principais partidos, incluindo o Trabalhista, de evitar escolhas difíceis em suas declarações políticas. 

“O crescimento deverá ser bem decepcionante e os juros da dívida deverão continuar altos. E essa combinação de fatores está com um aspecto pior do que em qualquer outro Parlamento na história pós- guerra do Reino Unido”, disse Isabel Stockton, economista sênior de análises do IFS. 

A dívida pública no Reino Unido aumentou para 104% do PIB em 2024, em comparação aos 86% em 2019 e aos 43% em 2007. Na França, a dívida nacional chegou a 112% do PIB, em comparação aos 97% em 2019 e aos 65% em 2007, de acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). 

Os déficits nos orçamentos públicos estão 3 pontos percentuais acima dos níveis pré-pandemia em todas as principais economias avançadas, de acordo com a firma de análises Capital Economics. Isso é reflexo, em parte, dos pagamentos de juros mais altos, mas também de aumentos de gastos que não estão mais relacionados à pandemia, segundo o economista-chefe da firma, Neil Shearing. “Não há muito espaço para grandes expansões fiscais”, acrescentou. 

Mesmo a Alemanha, em geral um exemplo de prudência fiscal, passou de grandes superávits orçamentários para déficits significativos. Na sexta-feira, após meses de duras negociações, a coalizão tripartite do premiê do país, Olaf Scholz, enfim anunciou ter chegado a um acordo orçamentário para 2025. O acordo obedece às regras rigorosas de endividamento do país, ao mesmo tempo em que prevê medidas para reanimar o fraco crescimento econômico e aumentar os gastos militares. 

EUA estão em pior situação 

O cenário dos EUA é pior: a dívida pública subiu para 123% do PIB, em comparação aos 108% em 2019, de acordo com a medida ampla do FMI. No mesmo período, a dívida federal em poder do público aumentou de 78% para 97%. Ainda assim, nem o provável candidato presidencial republicano Donald Trump nem o presidente democrata Joe Biden deram prioridade a reduzir a dívida, e há pouca pressão política para que se faça algo a respeito. 

O déficit dos EUA deverá chegar a cerca de 6,5% do PIB em 2024, de acordo com o FMI, o que o deixaria empatado com o Japão como o mais alto entre as principais economias industriais. Os EUA, entretanto, têm várias vantagens cruciais sobre a Europa: forte crescimento econômico, tendências demográficas menos adversas e mais espaço para elevar impostos, que são baixos pelos padrões internacionais. 

O status do dólar como reserva internacional também faz com que, em um mundo incerto, os investidores estejam mais propensos a comprar os títulos de dívida dos EUA do que de qualquer outro país. “Os EUA conseguem se safar com políticas fiscais insustentáveis por mais tempo do que qualquer outro país”, disse o economista-chefe do Berenberg Bank, Holger Schmieding. 

Na ocasião anterior em que as dívidas públicas foram tão altas em relação ao PIB, na esteira da Segunda Guerra Mundial, os governos conseguiram reduzi-la por meio de um alto crescimento econômico e fortes cortes nos gastos militares. Nos EUA, esses gastos caíram de cerca de 16% do PIB no início dos anos 1950 para menos de 4% hoje e, no Reino Unido, de mais de 10% para cerca de 2%. 

Desta vez, é difícil imaginar quais gastos poderiam ser reduzidos. Diante do envelhecimento médio das populações, os gastos governamentais com aposentadorias e saúde tendem a aumentar. 

A redução dos gastos públicos poderia exigir uma redução das expectativas quanto ao papel do Estado. Desde o fim da Segunda Guerra, essas expectativas cresceram muito e podem não ter se ajustado à realidade da recente baixa expansão econômica, segundo David Miles, da Agência de Responsabilidade Orçamentária (OBR, na sigla em inglês) do Reino Unido, que faz análises independentes sobre as contas públicas. 

Tudo isso eleva o risco de que investidores possam, em algum momento, pensar duas vezes antes de comprar títulos públicos, o que empurraria os juros muito mais para cima. No fim de 2022, no governo da então primeira-ministra do Reino Unido, Liz Truss, os juros dos bônus tiveram forte alta, após o anúncio de grandes cortes nos impostos e na captação, um plano que foi rapidamente revertido. Na Itália, em 2018, um governo que incluía o Movimento 5 Estrelas provocou uma forte alta dos juros com seus planos de gastos ambiciosos, mas também precisou recuar posteriormente. 

Apesar dos déficits colossais na Itália, a primeira-ministra do país, Giorgia Meloni, do populista Irmãos da Itália, até agora conseguiu evitar uma revolta dos investidores ao moderar seus planos de gastos públicos e adotar um tom conciliador em relação Bruxelas. A UE já declarou que a Itália, assim como a França, está em infração no que se refere às diretrizes de déficit do bloco econômico. 

O exemplo de Meloni, contudo, pode não se representativo do que ocorreria se populistas assumissem o governo em qualquer outro país. Um estudo de 2023 a respeito de 51 presidentes e primeiros-ministros populistas que governaram entre 1900 e 2020 constatou que eles costumam tropeçar no campo econômico. Manuel Funke, Moritz Schularick e Christoph Trebesch, do centro de estudos alemão Kiel Institute for the World Economy concluíram que ao longo de 15 anos, o PIB per capita e o consumo diminuíram em mais de 10% sob governos populistas em comparação com os não populistas, enquanto os encargos da dívida e a inflação também mostraram tendência a aumentar. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2024/07/08/dvidas-massacrantes-aguardam-novos-lderes-europeus.ghtml

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