Espécie de laboratório da antipolítica e do populismo hoje predominantes em diferentes paragens, a Itália vai às urnas para votar num referendo sobre o corte de mais de um terço dos seus parlamentares, além de escolher sete governos regionais.
Se confirmar as projeções das últimas pesquisas, a consulta vai consagrar o “tecnopopulismo” do Movimento 5 Estrelas (M5S), um dos partidos que governam o país e responsável pela proposta de reduzir os integrantes do Parlamento.
Aprovada no Legislativo no ano passado e agora submetida ao escrutínio popular, a redução é uma das principais bandeiras do movimento em sua cruzada contra a “casta política”, expressão que se popularizou na opinião pública italiana na última década.
Se o “sim” prevalecer, serão modificados três artigos da Constituição: os deputados passarão de 630 para 400, e os senadores de 315 para 200, alterando uma composição que vigora desde 1963. A Itália tem ainda a figura do senador vitalício, indicado pelo presidente da República, mas essas cadeiras, seis no total, não serão atingidas.
Pesquisas apontam apoio de quase 70% da população ao “sim”, consenso presente entre os partidos de esquerda e direita, governistas e da oposição.
Os contrários à redução consideram o referendo um exemplo do “populismo barato e demagógico” promovido pelo M5S, hoje o partido mais forte no Parlamento. Eles argumentam que o simples corte, sem uma ampla reforma da Constituição, não resolve o principal problema: o burocrático e lento funcionamento do chamado “bicameralismo paritário”, um peculiar sistema no qual Câmara e Senado têm concepções semelhantes e as mesmas funções.
A crítica se estende à diminuição da representatividade parlamentar, a uma economia considerada baixa (apesar da estimativa apontar para cerca de 57 milhões de euros por ano) e ao enfraquecimento da democracia perante uma agenda ditada exclusivamente pelas redes.
—Nosso número de parlamentares é muito alto, e isso tem relação com o clientelismo. Com o corte, teremos cerca de um parlamentar para cada 100 mil habitantes, a mesma proporção de países como França e Alemanha. O argumento de que haverá um déficit democrático não se sustenta — afirmou ao GLOBO o deputado Cristian Romaniello, membro do M5S envolvido na campanha do referendo.
A rede
Antissistema, pós-ideológico (termo usado pelos seus integrantes) e defensor da democracia direta, o M5S nasceu em 2009 a partir de um blog mantido pelo humorista Beppe Grillo, que se juntou a dois estrategistas digitais — Gianroberto Casaleggio, morto em 2016, e seu filho, Davide, atualmente à frente da estratégia digital.
Os dois, responsáveis por transformar o M5S numa força nacional graças ao uso dos algoritmos nas redes sociais, controlam o partido — que conta com uma plataforma online, alvo de polêmicas por ser supostamente manipulada, usada para consultar os membros inscritos e fechar posição sobre projetos e políticas públicas.
Estudiosos como o italiano Giuliano da Empoli, autor do best-seller “Os engenheiros do caos”, citam o pioneirismo do M5S na consolidação do populismo digital, copiado por outros partidos na Itália e hoje uma marca da política global.
Em 2018, o movimento assumiu o governo italiano ao lado da Liga, de extrema direita, alinhando-se ao senador Matteo Salvini. Pouco mais de um ano depois, após uma crise provocada por Salvini, que deixou o Executivo, uma nova coalizão foi formada, desta vez reunindo o M5S e o Partido Democrático, de centro-esquerda e herdeiro do antigo Partido Comunista. Giuseppe Conte, o primeiro-ministro indicado pelo M5S, foi mantido no cargo.
O governo segue relativamente bem avaliado em razão da resposta à emergência do coronavírus, mas a ida à urnas pode enfraquecê-lo. Menos pelo referendo e mais pelas eleições em sete regiões (Puglia, Toscana, Vêneto, Ligúria, Campanha, Marche e Vale de Aosta) que serão realizadas também hoje e amanhã. Aliados nacionalmente, o Partido Democrático e o M5S são adversários em algumas delas.
A votação mais esperada será na Toscana. Governada pela esquerda há mais de cinco décadas, a região pode eleger uma candidata da Liga de Salvini, que tenta ganhar uma nova sobrevida no plano nacional. Será a primeira eleição na Itália desde o início da pandemia. Inicialmente previstas para março, quando eclodiu a emergência, as votações serão realizadas em dois dias para evitar as aglomerações.
Terceira consulta
Esta é a terceira vez, nos últimos 14 anos, que um referendo é convocado para os italianos decidirem sobre a redução do número de parlamentares. Antes, os governos de Silvio Berlusconi (de centro-direita, em 2006) e de Matteo Renzi (de centro-esquerda, em 2016) realizaram consultas, com a proposta rejeitada pela população porque nos dois casos era parte de uma reforma constitucional mais ampla, prevendo mudanças no funcionamento do Parlamento.
Agora, a consulta restringe-se à redução dos deputados e senadores, sem entrar no mérito do “bicameralismo paritário” — sistema estabelecido no pós-guerra para equilibrar os Poderes e impedir autoritarismos como o do período fascista.
— Antes os eleitores não sabíam o que estava por trás das reformas. Agora o objetivo é reduzir apenas o número de parlamentares — ressalta Romaniello.
O M5S quer continuar discutindo outras pautas contra a “casta política”, como uma proposta de cortar o salário dos parlamentares.
O ideal, afirma o cientista político Giovanni Orsina, professor da universidade romana Luiss, seria reformar o funcionamento do Parlamento, que ele classifica de “confusão infernal”.
— O problema é a capacidade de autorreforma do sistema político italiano, que é muito baixa. Só é possível uma mudança circunstancial —afirmou Orsina ao GLOBO.
O especialista refuta o argumento de que o corte irá enfraquecer a democracia, embora reconheça que ele não contribua para seu aperfeiçoamento:
— Há uma hipocrisia no debate, tudo é visto como um perigo à democracia. Tudo virou propaganda, de um lado e de outro.
Estrategista do M5S, Davide Casaleggio considera inevitável superar a democracia representativa, como já disse no passado. O instrumento para isso é a internet, o meio empregado para substituir a “casta política” pelo homem comum. A redução de parlamentares seria um passo dessa “revolução”, embora os eleitores não estejam assim tão otimistas — mesmo os que votam “sim”.
Para os contrários ao corte, o difícil é se posicionar contra uma medida extremamente popular, como reconhece o empresário Raimondo Ricci, 57 anos, proprietário do Sant’Eustachio, um café histórico que fica ao lado do Palácio Madama, sede do Senado, no centro de Roma.
— Há o aspecto óbvio da economia, mas isso não significa que teremos um Parlamento melhor. Infelizmente não há relação entre uma coisa e outra — disse.