Há uma Guerra Fria entre EUA e China? Leia a análise

Kevin Rudd, o ex-primeiro-ministro australiano e especialista em China de longa data, disse recentemente a uma revista alemã que uma Guerra Fria entre Pequim e Washington era “provável e não apenas possível”, seus comentários explodiram nos arredores da Casa Branca, onde autoridades não mediram esforços para evitar as comparações.

É verdade, eles admitem, que a China está emergindo como um adversário estratégico muito maior do que a União Soviética jamais foi – uma ameaça tecnológica, uma ameaça militar e um rival econômico. E embora o presidente Joe Biden tenha insistido nas Nações Unidas no mês passado que “não estamos buscando uma nova Guerra Fria ou um mundo dividido em blocos rígidos”, suas repetidas referências a um conflito de gerações entre “autocracia e democracia” neste ano reviveu para alguns a ideologia limite dos anos 1950 e 1960.

No entanto, a questão de saber se os Estados Unidos estão entrando em uma nova Guerra Fria é mais do que apenas encontrar a metáfora certa para essa estranha virada na política das superpotências. Os governos que mergulham na mentalidade da Guerra Fria podem superdimensionar cada conflito, convencidos de que fazem parte de uma luta maior. Eles podem perder oportunidades de cooperação, como os Estados Unidos e a China fizeram na batalha contra a covid-19 – e ainda podem fazer sobre as questões climáticas.

E a questão de saber se esta é uma Guerra Fria, ou algo diferente, espreita logo abaixo das crescentes tensões sobre estratégia econômica, competição tecnológica e manobras militares – submarinas, no espaço e no ciberespaço.

Sem dúvida, as últimas semanas ressoaram ecos do comportamento do velho estilo da Guerra Fria: a Força Aérea Chinesa realizando manobras dentro da zona de identificação aérea de Taiwan; Pequim expandindo seu programa espacial, lançando mais três astronautas para sua estação espacial e acelerando seus testes de mísseis hipersônicos destinados a derrotar as defesas antimísseis americanas; e a libertação de um importante executivo da Huawei por dois canadenses e dois americanos no que parecia ser uma troca de prisioneiros. Ao mesmo tempo, os EUA anunciaram que forneceriam a tecnologia de submarino nuclear para a Austrália, com a perspectiva de que seus submarinos pudessem surgir, sem serem detectados, ao longo da costa chinesa. Não escapou aos comentaristas chineses que a última vez que os Estados Unidos compartilharam esse tipo de tecnologia foi em 1958, quando o Reino Unido passou a contar com reatores navais como parte do esforço para conter os arsenais nucleares em expansão da Rússia.

E pouco antes do anúncio do acordo com a Austrália, fotos de satélite revelaram novos silos de mísseis nucleares chineses, cuja existência Pequim não explicou. Analistas americanos não têm certeza sobre as intenções do governo chinês, mas alguns dentro das agências de inteligência americanas e do Pentágono se perguntam se o presidente Xi Jinping decidiu abandonar seis décadas de uma estratégia chinesa de “dissuasão mínima”, mesmo sob o risco de deflagrar uma nova corrida armamentista.

O constante ruído ao fundo sobre conflito cibernético e roubo de tecnologia foi um fator por trás do anúncio da Agência Central de Inteligência (CIA) sobre a criação de um novo centro de comando sobre a China para posicionar os Estados Unidos, nas palavras de seu diretor, William J. Burns, no enfrentamento à “ameaça geopolítica mais importante que enfrentamos no século 21, um governo chinês cada vez mais rival”.

Por tudo isso, os principais assessores de Biden dizem que a velha Guerra Fria é a maneira errada de enquadrar o que está acontecendo – e que o uso do termo pode criar espécie de “profecia autorrealizada”. Em vez disso, eles argumentam que deve ser possível para as duas superpotências se compartimentarem, cooperando no clima e contendo o arsenal da Coreia do Norte, mesmo enquanto competem em tecnologia e comércio, ou disputam vantagens no Mar da China Meridional e em torno de Taiwan.

A Casa Branca reluta em colocar um rótulo nessa abordagem em várias camadas, o que pode explicar por que Biden ainda não fez um discurso detalhando-a. Mas suas ações até agora parecem cada vez mais com aquelas em um mundo de coexistência competitiva, um pouco mais ousado do que a “coexistência pacífica” que o líder soviético Nikita Khrushchev usou para caracterizar a velha Guerra Fria. (Curiosamente, após se reunir este mês na Suíça com Jake Sullivan, o conselheiro de segurança nacional do presidente, o principal diplomata da China disse que se opôs a qualquer descrição da relação EUA-China como “competitiva”.)

Mas se o governo ainda está lutando com a terminologia, isso mostra que se sabe o que a relação não é.

“Isso não se parece em nada com a Guerra Fria, que foi basicamente uma competição militar”, disse um dos principais conselheiros da administração de Biden em uma entrevista, falando sob condição de anonimato porque, na Casa Branca de Biden, não há área onde as palavras são medidas com mais cuidado do que ao falar sobre as relações com Pequim.

Em julho, o principal conselheiro de Biden na Ásia, Kurt M. Campbell, disse à Asia Society que a comparação com a Guerra Fria “obscurece mais do que ilumina” e “de forma alguma ajuda, fundamentalmente, alguns dos desafios apresentados pela China”.

Os vínculos profundos entre as duas economias – as dependências mútuas de tecnologia, comércio e dados que ultrapassam o Pacífico em milissegundos em redes dominadas por americanos e chineses – nunca existiram na Guerra Fria. O Muro de Berlim não apenas delineou uma linha nítida entre as esferas de influência, liberdade e controle autoritário, como interrompeu a maioria das comunicações e do comércio. No ano em que caiu, 1989, os Estados Unidos exportaram US$ 4,3 bilhões em mercadorias para os soviéticos e importaram US$ 709 milhões, um pico para ambas as economias.(Em dólares atuais, esses números seriam um pouco mais do que o dobro.)

No atual impasse de superpotências, todas essas linhas são borradas, com equipamentos da Huawei e da China Telecom transmitindo dados através de países da Otan, o aplicativo chinês TikTok ativo em dezenas de milhões de telefones americanos e Pequim preocupada que o Ocidente suspenda a venda de semicondutores avançados para a China, paralisando algumas de suas principais empresas, incluindo a Huawei. E, no entanto, mesmo com uma pandemia e ameaças de “desacoplamento”, os Estados Unidos exportaram US$ 124 bilhões (R$ 689 bilhões) em mercadorias para a China no ano passado e importaram US$ 434 bilhões (cerca de R$ 2,4 trilhão). Isso tornou a China o maior fornecedor de mercadorias para os Estados Unidos e o terceiro maior consumidor de suas exportações, depois do Canadá e do México.

“O tamanho e a complexidade da relação comercial são subestimados”, disse Campbell em julho, como parte de seu argumento sobre por que este momento difere dramaticamente da Guerra Fria de 40 anos atrás.

Mas, outro conselheiro de Biden observou outro dia, a psicologia conta tanto na política das superpotências quanto nas estatísticas. E, quer os dois países queiram ou não chamar isso de Guerra Fria, eles frequentemente se comportam, observou o funcionário, como se “já estivéssemos imersos em uma”.

Esse é o argumento central daqueles que afirmam que uma nova Guerra Fria – uma muito diferente da anterior – está rapidamente dominando as negociações de Washington com seu principal rival. “As pessoas pensam que a única definição de Guerra Fria é o modelo EUA-URSS”, disse Paul Heer, um antigo analista da CIA que passou anos focado na Ásia. E completou: “o que não precisa ser”.

Ele concorda com os funcionários da Casa Branca que dizem que a nova dinâmica não é definida em grande parte por um impasse nuclear, ou por uma luta ideológica em que apenas um lado pode prevalecer. E, como observou em um artigo recente no The National Interest, o mundo não vai “se dividir em campos americanos e chineses”.

Mas o elemento central da velha Guerra Fria – “um estado de hostilidade sem conflito armado”, nas palavras de Heer – já está claro, à medida que ambos os países buscam poder e influência, e obstruir ou conter um ao outro. “Há boas razões para que nenhum dos governos queira chamá-la de Guerra Fria”, observou Heer em uma entrevista na semana passada. “Mas ambos estão abordando dessa forma, e a política de ambos os lados está tornando difícil imaginar como vamos evitar que isso evolua”.

Em Washington, uma das poucas questões que anula as divisões partidárias no Congresso é o espectro da competição chinesa, em áreas cruciais como semicondutores, inteligência artificial e computação quântica: é assim que o “projeto da China” foi aprovado no Senado em uma votação solidamente bipartidária – o tema ainda não foi abordado na Câmara.

Embora poucos no Capitólio queiram pronunciar as palavras, o projeto de lei equivale à política industrial, um conceito que já foi polêmico em Washington e agora mal é debatido, graças ao espectro da competição chinesa. Por exemplo, o projeto do Senado, aprovado, oferece US$ 52 bilhões (R$ 288,9 bilhões) para expandir a fabricação doméstica de chips, muito além de qualquer coisa que os Estados Unidos consideraram quando lutaram contra o domínio tecnológico do Japão na mesma indústria há mais de 30 anos. Mas hoje a participação do Japão nas vendas globais de chips caiu para cerca de 10% e não é mais importante nos temores da indústria americana.

Há razões para se preocupar porque, seja qual for o nome desta era, a chance de conflito é agora maior do que nunca. Joseph S. Nye, mais conhecido por seus escritos sobre o uso de “soft power” na competição geopolítica, rejeita a analogia da Guerra Fria, observando que, enquanto muitos em Washington “falam sobre um ‘desacoplamento’ geral” das duas maiores economias do mundo, “é um erro pensar que podemos separar nossa economia completamente da China sem enormes custos econômicos”.

Mas Nye, que já dirigiu o Conselho Nacional de Inteligência, um grupo que fornece avaliações de longo prazo de ameaças aos Estados Unidos, alerta contra o risco do que ele chama de “síndrome do sonâmbulo”, que é como o mundo entrou em conflito em 1914.

“O fato de a metáfora da Guerra Fria ser contraproducente como estratégia não exclui uma nova Guerra Fria”, disse ele. “Podemos chegar lá por acidente.”

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