Guerra Israel-Hamas favorece Rússia e China no xadrez geopolítico

A guerra entre Israel e Hamas não só ameaça fazer eclodir uma conflagração regional. Também afeta o equilíbrio mundial de poder, ao consumir recursos americanos e europeus enquanto alivia a pressão sobre a Rússia e traz novas oportunidades para a China.

É difícil de prever o impacto de longoprazo do conflito no Oriente Médio. Depende, antes de tudo, de Israel ter êxito ou não em seu objetivo declarado de eliminar o Hamas como principal força militar e política na Faixa de Gaza. Outra questão é se os relacionamentos diplomáticos de Israel na região e o prestígio internacional de seus aliados ocidentais poderão sobreviver ao número cada vez maior vítimas civis na Faixa de Gaza e aos horrores da iminente guerra urbana no enclave altamente povoado. 

Ainda assim, é possível dizer que, por enquanto, a guerra iniciada peloHamas em 7 de outubro com um ataque brutal a cidades e vilarejos israelenses, que matou cerca de 1.400 pessoas, em sua maioria civis, está se mostrando benéfica aos principais rivais geopolíticos dos EUA. 

É verdade que os EUA já estão de volta ao Oriente Médio, exibindo seu papel como aliado indispensável de Israel e de países árabes cruciais por meio da chamada diplomacia de mediação e de deslocamentos militares — um engajamento que conta com apoio bipartidário e dissipa parte do sentimento isolacionista que tem ganhado força nos últimos anos. 

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, cujas forças, segundo autoridades ucranianas, mataram dezenas de milhares de civis quando sitiaram a cidade ucraniana de Mariupol por meses em 2022, comparou o cerco israelense à Faixa de Gaza ao da cidade natal dele São Petersburgo, chamada Leningrado, durante a Segunda Guerra Mundial. Isso, em sua essência, equiparou os israelenses aos nazistas. A escolha das palavras, uma grande mudança em relação ao relacionamento outrora caloroso de Putin com o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, faz parte do esforço russo para posicionar o país como líder do movimento mundial contra o “neocolonialismo” do Ocidente, mesmo enquanto trava uma guerra colonial de conquista na Ucrânia. 

“Qualquer conflito que tire alguma atenção da Ucrânia joga a favor da Rússia”, disse o ministro das Relações Exteriores da Lituânia, Gabrielius Landsbergis. “Os russos podem não tê-lo iniciado, mas têm enorme interesse em prolongar o conflito em Israel o máximo possível. Seria uma vitória tática para os russos na Ucrânia, e estratégica por fortalecer sua narrativa contra o mundo ocidental.” 

A China também abraçou a causa palestina. Seus laços antes cordiais com Israel estão em frangalhos. Apesar de Pequim afirmar a necessidade de combater o terrorismo quando reprime os uigures em Xinjiang, a China se absteve de usar a palavra “terrorismo” ao descrever o ataque do Hamas, para grande desgosto de Israel — apesar de quatro cidadãos chineses terem sido mortos pelo Hamas e outros três terem sido feitos reféns, segundo autoridades israelenses. 

“O ponto central é que não se fez justiça com o povo palestino”, disse o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, na quinta-feira, em suas primeiras declarações desde a invasão do Hamas que desencadeou a guerra. 

Enquanto Pequim se prepara para um possível confronto com os EUA sobre o futuro de Taiwan, especialistas em China dizem que o país se beneficia do desvio da atenção de Washington para os problemas no Oriente Médio. 

“O que importa para a China são os interesses da China e o mais importante para Pequim é o relacionamento com os EUA, e as maneiras pelas quais a China poderia enfraquecer os EUA e a imagem dos EUA”, disse Antoine Bondaz, especialista em China no centro de estudos Fondation pour la Recherche Stratégique (FRS), em Paris. “Eles tentarão retratar os EUA como o fator de instabilidade e a China como um fator de paz. O objetivo da China é se apresentar às nações em desenvolvimento como uma alternativa — e como uma alternativa mais atraente.” 

A guerra lançada pelo Hamas também prejudica o principal rival asiático da China, a Índia, que nos últimos anos ficou muito mais próxima de Israel. Ainda em setembro, a Índia e os EUA anunciaram planos para criar um corredor de trânsito que conectaria a Índia, o Oriente Médio e a Europa e passaria pelos Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Jordânia e Israel, tornando-se concorrente do projeto chinês da Iniciativa do Cinturão e da Rota (BRI, na sigla em inglês). As negociações sobre a normalização das relações entre Israel e a Arábia Saudita — um elemento-chave do plano — foram prejudicadas pela guerra na Faixa de Gaza e seu futuro agora é incerto. 

“A Índia investiu muito no Oriente Médio em geral e especialmente em Israel e em países árabes cruciais, como os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita”, disse Ashok Malik, presidente do departamento da Índia da firma de consultoria Asia Group e ex-assessor de políticas do Ministério das Relações Exteriores da Índia. “A normalização das relações entre Israel e países árabes progressistas que buscam aproveitar oportunidades econômicas e tecnológicas para se modernizar, como parte de uma normalização mais ampla no Oriente Médio, é algo que a Índia incentiva — para oportunidades de negócios, mas também como um conceito político mais amplo”. 

Para muitos países na Europa, uma escalada da guerra, além de deixar os relacionamentos regionais sob tensão e desviar a atenção da Ucrânia, também poderia causar uma crise energética e até prejudicar as alternativas ao petróleo e gás russos no Oriente Médio. 

O derramamento de sangue no Oriente Médio também traz o risco de uma retomada da violência por parte de grupos militantes islâmicos dentro das fronteiras dos países da região, como ocorreu durante a campanha contra o Estado Islâmico (EI) entre 2014 e 2017. Grandes manifestações pró-palestinas já inundaram as ruas das principais capitais europeias no último fim de semana, com cantos de alguns manifestantes em apoio ao objetivo do Hamas, a eliminação de Israel. 

“Sempre que algo tão intenso acontece na Faixa de Gaza ou em Israel, isso tem consequências na Europa”, disse Thomas Gomart, diretor do centro de estudos Institut Français des Relations Internationales (Ifris). “O que estamos vendo agora é a sobreposição e o entrelaçamento de diferentes peças. Qual será a peça principal para a Europa nos próximos anos? Será o Oriente Médio? Será a Ucrânia? O Cáucaso? As questões com o Irã? A aceleração das crises é assombrosa e para a Europa, isso significa ter que fazer ajustes muito brutais.” 

A Rússia certamente dá como certa uma diminuição da atenção do Ocidente à Ucrânia, onde as forças russas lançaram uma tentativa até agora malsucedida de tomar a cidade de Avdiivka, logo após o ataque do Hamas. Se a guerra no Oriente Médio se expandir e envolver o Líbano e, possivelmente, o Irã e os EUA diretamente, os recursos de ajuda militar previstos para a Ucrânia, que já estão minguando, poderiam se tornar mais escassos — um risco reconhecido por Kiev. 

“Se o conflito ficar limitado em termos de tempo a uma questão de semanas, então, em princípio, não temos com o que nos preocupar”, disse o chefe da agência inteligência militar HUR da Ucrânia, tenente- general Kyrylo Budanov, ao jornal “Ukrainska Pravda”. “Mas se a situação se arrastar, é compreensível que haverá certos problemas com o fato de que não apenas a Ucrânia precisará ser abastecida com armas e munições.” 

Até agora, uma parte bem pequena da ajuda militar enviada pelos EUA a Israel é do tipo que Ucrânia precisaria. O pedido mais urgente de Israel é de interceptores para seu sistema antimíssil Domo de Ferro, que não é operado pela Ucrânia, enquanto a principal necessidade dos ucranianos são as munições de artilharia de 155 mm. Em termos gerais, Israel depende pesadamente de sua grande Força Aérea, enquanto na guerra do Ucrânia o poder aéreo tem papel limitado. Durante a incursão israelense de 50 dias em Gaza em 2014, o Exército israelense disparou 19 mil projéteis explosivos de 155 mm, quantidade que a Ucrânia consome em apenas uma semana. 

“A Força de Defesa de Israel é muito semelhante a uma força militar no estilo ocidental, com poder aéreo, que pode ser gerenciada com mais facilidade”, disse Franz-Stefan Gady, executivo-chefe da Gady Consulting, uma firma de consultoria militar com sede em Viena. “Por sua vez, as Forças Armadas ucranianas continuam sendo uma força legada da era soviética, com a maioria de seu poder de fogo tendo base terrestre, o que é muito mais difícil para os EUA respaldarem.” 

O maior risco para a Ucrânia nas últimas semanas tem sido a relutância de republicanos na Câmara em autorizar ajuda adicional dos EUA. A crise no Oriente Médio poderia enfim remover esse obstáculo, uma vez que o governo Biden tenta incluir a ajuda militar a Israel e a Ucrânia no mesmo pacote. 

“É mais provável agora é que tenhamos um grande pacote de financiamento que inclua Israel, o que significa que se você quiser votar contra a Ucrânia, terá que votar contra Israel também, e ninguém está disposto a fazer isso”, disse Ivo Daalder, executivo-chefe do centro de estudos Chicago Council on Global Affairs e ex-embaixador dos EUA na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, a aliança militar ocidental). 

Em termos gerais, os EUA deverão ter condições de apoiar Israel e Ucrânia, e manter seus compromissos com Taiwan, acrescentou. “Podemos andar e mascar chiclete ao mesmo tempo”, disse. “Temos a capacidade e somos a potência global que pode fazer tudo isso.” 

De qualquer forma, a crise no Oriente Médio também é um lembrete de como os EUA continuam importantes para a região e o mundo. A China alardeou sua entrada na política regional em março, quando intermediou um acordo para restabelecer as relações diplomáticas entre a Arábia Saudita e o Irã. Mas agora, com o crescente risco de uma guerra regional, a China mantém-se discreta — enquanto os americanos enviaram às pressas dois porta-aviões com suas frotas auxiliares e o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, está viajando pela região, tentando conter o conflito. 

“O poder principal de influência da China na região era o acesso a seus mercados, acesso a seus investimentos. É seu poder econômico”, disse Gordon Flake, executivo-chefe do USAsia Center, da Universidade da Austrália Ocidental. “Eles ainda não têm ‘poder duro’ [o poder militar coercitivo] naquela região, e, portanto, ninguém está recorrendo à China para resolver seus problemas.” 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2023/10/16/guerra-israel-hamas-favorece-russia-e-china-no-xadrez-geopolitico.ghtml

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