A guerra da Rússia contra a Ucrânia tende a acelerar o nacionalismo econômico em grandes países. Em meio à violência dos conflitos, líderes acentuam discursos de autonomia estratégica, de não-dependência e de autossuficiência também alimentar. A sinalização crescente é de comércio administrado, politizado, e de substituição de importação na cena internacional.
As empresas já antes da pandemia haviam começado a ensaiar a volta de parte da produção ou busca de fornecedores mais próximos de seus mercados. A guerra reforça esse movimento, e governos podem ampliar a fase protecionista em contexto global. O Brasil, uma das dez maiores economias do mundo, vai precisar tirar suas conclusões desse cenário e ajustar posições, cedo ou tarde.
Com a guerra na sua fronteira, sob forte dependência do gás russo e comprador de vários produtos minerais e agrícolas da Rússia e da Ucrânia, a União Europeia (UE) deseja proteger o bloco dos riscos geopolíticos ou outros, que poderiam paralisar sua economia. Os europeus querem instaurar uma nova relação de força com o resto do mundo. Programas bilionários de pacto verde e de transformação são eixos da política industrial europeia, para não depender, ou depender menos, do exterior.
A França, atualmente na presidência da UE, comanda a orientação para uma Europa mais autônoma e mais intervencionista. Na quarta-feira, o presidente Emmanuel Macron dirigiu-se aos franceses num pronunciamento na televisão, destacando que os acontecimentos atuais “são o sinal de uma mudança de época”. Ele disse que a França amplificará o investimento em defesa e seguirá com a estratégia de independência e de investimentos na sua economia. “Não podemos mais depender dos outros para nos alimentarmos, nos cuidarmos, nos informarmos, nos financiarmos.’’
Macron está em campanha eleitoral para a reeleição, mas o contexto atual é mais favorável a seu posicionamento. “A ideia de políticas industriais europeias, autônomas em relação à China, mas também aos EUA, existe há vários anos, e poderá ser reforçada’’, diz Paul Maurice, do Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri). “O liberalismo não terminou. Macron é um liberal, mas ele deseja fazer da Europa uma potência que poderá utilizar o liberalismo para isso. Trata-se de agir como as outras potências continentais – China, EUA, Rússia -, que protegem seus mercados. O que parece estar chegando ao fim é a ideia de que a economia está desconectada da geopolítica”, afirma.
Forças menos intervencionistas que os franceses evitam falar de autossuficiência, até pelo enorme custo. Somente na área de microprocessadores, dobrar a produção custaria mais de € 240 bilhões. “Este é um conflito civilizatório e a tarefa chave da Europa para o próximo ano é se livrar de sua dependência da energia da Rússia”, diz Frederik Erixon, do Centro Europeu de Economia Política Internacional (Ecipe, na sigla em inglês), um think tank sediado em Bruxelas. “Porém, a noção de que vamos fazer a Europa economicamente autossuficiente e independente do resto do mundo é um sonho.’’
Nos EUA, o esforço de política industrial do governo de Joe Biden está ancorado no contexto de concorrência estratégica em relação à China. Para Aluisio de Lima- Campos, professor da American University, em Washington, um exemplo de propagação de nacionalismo econômico foi o discurso de Biden na última terça-feira.
“Se for feito o que Biden deseja, de, na prática, produzir nos EUA o que os EUA não produzem ou não produzem o suficiente, para não ficar dependente de ninguém, vai ser muito pior do que a política de ‘reshoring’ (retorno da produção ao país de origem da empresa) do Trump e ter impacto dramático nas cadeias de valor’’, diz o professor. “Biden está propondo subsídios à produção industrial, coisa que os EUA sempre rejeitaram. Se juntar os projetos em discussão na Câmara, o total passa de US$ 1 trilhão. É algo sério.”
Lima-Campos nota que o Senado americano aprovou política específica de subsídios, só para semicondutores, da ordem de US$ 52 bilhões. “Há uma série de políticas que, num ambiente normal, não passariam nunca, mas que num ambiente pós- pandemia e de conflito Ucrânia-Rússia têm chance de passar”, diz o pesquisador.
O “Buy American” proposto por Biden, para dar preferência aos produtos domésticos, é considerado o mais amplo em 80 anos, para substituir importações.
Para estar pronta em caso de crise geopolítica ou geoeconômica internacional, a China busca diminuir vulnerabilidades que decorrem da dependência de importações de matérias-primas pela diversificação das fontes ou impulsionando a produção doméstica. Para os chineses, a piora das relações com os EUA e os gargalos de logística impostos pela pandemia, já podiam criar dificuldades de acesso a produtos críticos (ferro, carvão, soja, chips, etc).
A China importa mais de 80% do minério de ferro que utiliza, dos quais 60% provêm da Austrália e 21% do Brasil. A Rússia aparece como forte candidata a aumentar as vendas para a China, com a terceira maior reserva mundial, distribuída em áreas como Sibéria e os Urais.
O presidente Xi Jinping, ao falar recentemente da necessidade de prevenir escassez de matérias-primas, insistiu que a China deve ter “autossuficiência’’ em energia, alimentos e minerais em meio aos desafios globais.
O Japão pagou 87 companhias para trazer de volta produção da China para o país ou transferi-la para mercados como Vietnã, Tailândia e outros do sudeste asiático. O argumento foi reduzir concentração excessiva na China em meio a uma nova fase da globalização.
Com a guerra na Ucrânia, os preços de alimentos estão subindo rapidamente de novo. E isso pode dar argumento na Organização Mundial do Comércio (OMC) a uma dupla tentativa de fechamento de mercados agrícolas por um grupo de países liderados pela Índia.
Esse grupo quer o direito de formar estoques públicos para fins de segurança alimentar, com subsídios ilimitados e irrestritos para ampla variedade de commodities, incluindo açúcar, sem questionamentos pelos parceiros. E, segundo, quer poder aplicar salvaguardas especiais, ou seja, aumentar tarifa para produtos agrícolas quando houver declínios abruptos de preços ou aumento súbito de importação. O confronto com Brasil e outros exportadores está no radar.
Para Victor do Prado, ex-diretor do Conselho e do Comitê de negociações comerciais da OMC, a tendência de os países tentarem ficar menos dependentes é clara. A noção de autonomia estratégica significa não depender dos outros. Empresas querem comprar matéria-prima e seus componentes mais perto de sua produção e se possível no mesmo espaço econômico. E com isso, tentar evitar choques do tipo covid ou guerra.
“Não devemos exagerar essa tendência, mas precisamos reconhecer o que está em transformação e saber aproveitar as oportunidades de uma reglobalização ou de uma nova globalização’’, diz Prado. A seu ver, o nacionalismo econômico vai levar pelo menos a uma regionalização das produções impulsionadas pelas empresas, mas também pelos governos, e pode-se esperar dois ou três grandes blocos: Ásia, Europa e as Américas. “O Brasil, que exporta muitos produtos primários, tenderá a ser um pouco menos afetado.”