Guerra da Ucrânia acelera mudança do centro de poder da Europa para o Leste

The New York Times; Em agosto, em Praga, o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, afirmou diretamente: “O centro da Europa está se movendo para o leste”. A invasão russa tinha sido um choque para a complacente ordem vigente no continente, tanto para a União Europeia quanto para a Otan. E sublinhou e aumentou a influência de países da Europa Central e do Leste.

Polônia e os Estados Bálticos conduziram o argumento moral de apoio à Ucrânia preenchendo um quase-vácuo no início da guerra, quando os líderes tradicionais da Europa, França e Alemanha, pareceram paralisados. Mas a guerra também trouxe nova urgência e energia para a expansão da União Europeia para os Bálcãs Ocidentais e além, com ofertas de candidatura para Ucrânia e Moldávia.

A pressão expressa da Europa Central e do Leste foi crucial para as decisões desta semana, depois de meses de hesitações e resistências em relação a fornecer tanques ocidentais para a Ucrânia. Na quarta-feira, Scholz anunciou que seu país enviará mais de seus tanques Leopard 2 e permitirá que outros países enviem os que possuem, e o presidente Joe Biden afirmou que enviará tanques americanos Abrams, o que concedeu a Scholz a cobertura política que ele queria.

A guerra também está acelerando algo que Scholz insinuou: o equilíbrio de poder dentro da Europa também está mudando, juntamente com seu centro, afastando-se da “Velha Europa”, que valorizava e cultivava seus laços com Moscou, e aproximando-se dos novos membros do leste e do norte, com suas novas memórias brutas da ocupação soviética e a relutância em ceder fatias de sua soberania restabelecida para Bruxelas.

“Scholz está certo”, afirmou Timothy Garton Ash, historiador especializado em Europa, da Saint Antony’s College, de Oxford. “As vozes dos europeus do centro e do leste estão sendo mais escutadas e levadas mais a sério nos conselhos da Europa, e há uma agenda de grande expansão oriental sobre a mesa.”

Com uma grande guerra dentro de suas fronteiras, a Europa trata mais de poder duro atualmente do que antes, afirmou ele. “Portanto, ter uma Europa Central e do Leste que leva segurança a sério surte um impacto.”

A Polônia tem Forças Armadas em rápida expansão — o governo polonês afirmou no ano passado que planeja dobrar o tamanho das corporações militares do país — e encomendou uma grande quantidade de armas novas, o que a torna uma jogadora mais importante tanto na União Europeia quanto na Otan.

“O poder se moveu para o leste, e a Ucrânia cimentará esta tendência”, afirmou Jana Puglierin, diretora em Berlim do Conselho Europeu de Relações Internacionais. É possível exceder exageradamente os limites da guerra na Ucrânia, afirmou ela, “mas vemos um padrão claro em liderança moral”.

Países da Europa Central e do Leste, afirmou Puglierin, consideram a si mesmos “os combatentes pela liberdade na UE e pela defesa de seus valores, levantando-se contra a ditadura”. Eles se sentem vindicados sobre seus antigos alertas a respeito do neoimperialismo da Rússia, de seu presidente, Vladimir Putin, e da dependência da Europa em relação à energia russa — em contraste com o que consideram uma ingenuidade da Europa Ocidental em diplomacia e comércio com a Rússia.

Agindo cedo para fornecer ajuda militar para a Ucrânia e receber refugiados, esses países ajudaram a forjar a narrativa para a Europa, enquanto “em Berlim e Paris também houve tal vácuo, negociando com Putin até o fim e surpresos com a invasão”, afirmou Puglierin. “Os países do leste de movimentaram rapidamente e de maneira muito mais crível, e nós ficamos estarrecidos e congelados.”

Alemanha e França também tiveram de confrontar o fracasso de sua tradicional política de segurança em relação à Rússia. O presidente francês, Emmanuel Macron, persiste na esperança de integrar qualquer negociação de paz futura entre Rússia e Ucrânia — chegando ao ponto de dar à Rússia garantias de segurança, o que enfureceu muitos em toda a Europa, não apenas no leste.

A guerra também esvaziou a aspiração de Macron por uma defesa europeia “autônoma”, dado o papel acentuadamente expandido da Otan e dos Estados Unidos ao longo do ano passado.

“Os países do leste não são grandes fãs da defesa da UE — eles querem os EUA e a Otan”, afirmou Puglierin. A Alemanha também quer melhorar a relação transatlântica e depende de Washington mesmo enquanto tenta reconstruir suas irrisórias Forças Armadas. “Portanto a França perderá alguns aliados e se verá em minoria.”

Enfraquecida dentro da Europa, pelo menos por agora, a França também será menos influente em uma Otan mais ativa e agressiva. A aliança depende mais das armas americanas e da liderança dos EUA do que antes da guerra, não o contrário, e logo deverá se expandir com as novas adesões de Suécia e Finlândia.

O novo governo alemão liderado por Scholz não estava preparado para a guerra, muito menos para um súbito corte na energia da Rússia e no comércio com os russos. Com uma preocupação crescente a respeito de uma dependência similar em relação à China, a Alemanha está diante da necessidade de reformular sua economia orientada para exportação, que foi construída sobre o gás natural barato que vinha da Rússia e um comércio desenfreado com a China.

No longo prazo, “o prospecto de uma Europa maior e mais oriental será fonte de grande força para a economia alemã”, afirmou Garton Ash, com a Ucrânia representando um vasto potencial para desenvolvimento.

Mas França e Alemanha estão, pelo menos por enquanto, no contrapé na Europa em relação ao futuro próximo. O historiador Luuk van Middelaar, especialista em União Europeia, nota que, desde que a guerra começou, Polônia e Hungria têm sido tratadas com mais gentileza por Bruxelas em relação às queixas europeias sobre as condições do estado de direito nos países. “Politicamente e moralmente a Polônia sai impune em razão do papel que desempenha enquanto Estado na linha de frente, transportando armas e aceitando refugiados”, afirmou ele.

“A nova importância da Polônia para a Otan também a torna mais importante para” a União Europeia, afirmou Wojciech Przybylski, do instituto de pesquisas Res Publica, com base em Varsóvia. “O volume de compras de novos equipamentos e atualizações de sistemas de defesa torna a Polônia um país com o qual você tem de conversar quando discute garantias de segurança e paz.”

A Europa Central e do Leste, afirmou ele, “mostra bastante arrogância, mesmo que a substância ainda esteja nas mãos dos jogadores maiores”. A guerra, acrescentou ele, “confirmou a realidade de que a Europa não pode mais ser governada de Paris e Berlim”.

Hans Kundnani, da ONG Chatham House, que escreveu longamente sobre Alemanha e União Europeia, observa uma mudança psicológica na Europa. “Os poloneses e os centro-europeus se sentem mais confiantes, e os franceses e alemães estão mais na defensiva”, afirmou ele.

Não há dúvida de que politicamente e até em termos de valores culturais, os países da Europa Central e do Leste “puxam a Europa para a direita”, afirmou Kundnani. “Há um ressurgimento do neoconservadorismo com o pano de fundo da Ucrânia. O perigo é que isso divide a Europa em vez de uni-la.”

Mas o poder de Bruxelas tem como base economias e dimensões demográficas, afirmou ele, portanto o centro de gravidade da Europa permanece no Ocidente. Apesar da recente assertividade dos países do leste, afirmou ele, “não estou convencido de que confiança e elevação moral são suficientes para alcançar grande coisa em Bruxelas”.

Van Middelaar e Kundnani delineiam uma distinção entre a influência retórica capaz de forjar opinião pública — incluindo “as energéticas e midiáticas falas de ministros dos Estados Bálticos ou poloneses” — e mudanças estruturais. “Muitas coisas na UE não têm relação com a Rússia, a guerra ou defesa; e a respeito desses assuntos o equilíbrio do poder não mudou tanto”, afirmou ele. “França e Alemanha ainda são bastante centrais nesses debates econômicos.”

Mas mesmo aí o poder do “casal” franco-alemão vem se dissipando já há algum tempo. Van Middelaar comparou a guerra na Ucrânia a outro choque tectônico na Europa: a queda do Muro de Berlim e a reunificação da Alemanha.

Os líderes de França e Alemanha na época, François Mitterrand e Helmut Kohl, tiveram conflitos acalorados sobre a reunificação, mas vinham trabalhando proximamente havia anos. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, Scholz, que havia assumido a função menos de três meses antes, e Macron mal se conheciam.

“Não havia nenhuma relação de trabalho ou intimidade profissional, o que é preciso em momentos assim”, afirmou Van Middelaar, então houve “muita suspeita interna” e “um desconforto subjacente a respeito de como lidar com este novo continente em que a Rússia é o inimigo e a Alemanha tem de repensar seu modelo econômico e político”. Isso criou um vácuo de liderança que os países da Europa Central e do Leste têm tentado agressivamente preencher. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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