Ética, alguém viu por aí? – reflexões sobre corrupção e cultura brasileira

Carlos Frederico Lucio

Na semana passada deu-se mais um grande desdobramento da “Operação Lava Jato”, deflagrada pela Polícia Federal em março de 2014: um esquema para lavagem de dinheiro envolvendo bilhões de dólares em que partidos políticos e seus representantes teriam se aproveitado para beneficiar empresas (muitas posteriormente, como revelado pelas investigações, grandes empreiteiras envolvidas com os bilionários negócios da Petrobrás) e empresários. Nesta fase da operação (7ª, desde o seu início em março de 2014), foram expedidos mais de 80 mandados de prisão contra pessoas ligadas à iniciativa privada, entre elas, altos executivos das maiores empreiteiras do país. A investida contra o chamado braço político parece que não demorará e virá nos próximos dias. Tudo com ares de algo histórico no combate à corrupção no país. 
Assim como em tantos outros esquemas de corrupção, é interessante notar que, do ponto de vista das opiniões veiculadas pelas mídias sociais, muito se fala e se enxovalha sobre o envolvimento de políticos e partidos. São nítidos os gritos de protestos (muitos histéricos) contra atitudes que dilapidam o patrimônio público. No entanto, como aconteceu na semana passada, praticamente nada se fala sobre a participação de empresas, empresários e demais funcionários que se beneficiaram deste esquema. Quase não houve reverberação nas mídias sociais e, as poucas que vi, ainda falavam dos políticos (como se não houvesse grandes interesses privados envolvidos, ou como se estes fossem de menor importância). 
Para o imaginário do senso comum, é como se a corrupção tivesse apenas um lado, o corrupto, sendo cômoda e cinicamente desprezado o outro, o do corruptor. E a coisa me parece ser de um raciocínio não tão complexo assim para escapar à compreensão das mentes mais medianas. Afinal, corrupção só existe quando há uma parte interessada em obter vantagens da esfera pública (o corruptor) que, para isso, paga propina (corrompendo) a agentes do Estado (corruptos). Aliás, isso é tão óbvio que já estava previsto no Código Penal (Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940, em vigor até hoje) que, no seu Art. 333, estabelece a figura da corrupção ativa (corruptor) como crime: 
Art. 333 – Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício.
O mesmo Código estabelece também a figura da corrupção passiva: 
Art. 317 – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem.
Há muitos anos, nos meus cursos que têm o Brasil como tema, eu venho trabalhando sob o viés antropológico um olhar a respeito de uma contradição que considero estrutural e estruturante na formação (e interpretação) da sociedade brasileira: uma tensão constante entre o arcaico e o moderno. Partindo do pressuposto de que a articulação entre as esferas política, econômica e social é fundamental para a estruturação da sociedade (principalmente a contemporânea), em 2011, ano em que tomou possa a presidente Dilma Rousseff, publiquei uma síntese de algumas dessas ideias num ensaio intitulado “O eterno dilema da quase modernidade brasileira”. Com um título que expressa quase uma síntese de um dos seus pontos centrais, nele eu defendia a ideia de que se queremos construir a tão desejada modernidade no campo econômico (em particular no Brasil), é fundamental que façamos o mesmo na esfera política e no campo social sob pena de naufragarmos no projeto de modernização plena do país. 
Um dos argumentos fortes do texto é que nós brasileiros, no nosso imaginário, nutrimos um profundo desejo por uma modernidade idealizada, e de uma certa forma invejando (e nos comparando constantemente) com países “que deram certo” (ou seja, onde estes três campos se articulam de maneira mais ou menos harmônica – termo usado aqui com conotação simbólica e genérica, não literal). Entretanto, na vida concreta cotidiana, nossas ações constroem de forma acentuada uma sociedade arcaica. Em outras palavras, defendo no texto da ideia de que queremos os benefícios da modernidade, mas não estamos dispostos a arcar com o alto custo que ela nos cobra: o custo da ordem, da lei, do altruísmo e de pensar a coisa pública de abrir mão de interesses e vontades pessoais. E nós navegamos nesse eterno dilema de uma quase modernidade que nunca se completa. Como interpretou Roberto DaMatta há muitos anos: entre a lei e a ordem, construímos o jeitinho como nosso modo particular de navegação social. E a proliferação dos casos de corrupção (envolvendo empresas e empresários rapinando a máquina pública para atender a seus interesses) são o aspecto mais perverso de uma profunda e violenta tradição arcaica. 
Certamente o conceito de modernidade é um dos mais complexos e debatidos das ciências humanas. Para caracterizar o debate (e a argumentação), vou considerar aqui um de seus aspectos consensuais: no campo social e político se constrói uma fronteira bem definida e clara que separa de forma definitiva a esfera pública da esfera privada. Ou seja, aquilo que pertence à dimensão da coletividade, de todos e aquilo que é a esfera do privado, do íntimo. É assim que, nas chamadas sociedades modernas, quando há um choque entre os interesses privados, particulares, e os interesses coletivos há uma prevalência destes últimos expressos pelas regras formuladas em um Estado de Direito a que temos que subjugar nossas vontades pessoais. Embora a função primordial das leis seja buscar uma adequação entre essas duas esferas de interesses, há uma expressa preponderância para o último que não deve ser sacrificado em detrimento dos primeiros. Por outro lado, nas sociedades arcaicas, a vontade pessoal, o profundo desprezo e a consequente violação sistemática (e sistêmica) das regras, é o seu traço mais constante e marcante. Usa-se as instituições para atender e garantir interesses privados e particulares. 
Olhando por este prisma, toda forma de englobamento ou apropriação (simbólica ou concreta) da esfera pública pela privada, se constitui num atentado contra a construção de uma sociedade plenamente moderna. Assim, desde gestos considerados menores (o desrespeito às leis de trânsito, as trapaças escolares, o “jeitinho” – que nada mais é do que fazer valer a vontade pessoal sobre a regra -, etc.) até os grandes escândalos de corrupção no Estado, envolvendo grandes empresas e empresários renomados, estamos lidando em maior ou menor grau com o fenômeno que, em sua natureza, é o mesmo: apropriação do público pelo privado. Este tema já foi amplamente debatido por autores como Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Roberto DaMatta, Adauto Novais entre tantos outros. 
Há cerca de 23 anos, isso foi muito bem mostrado por uma jornalista da TV Cultura quando, em 1991, em pleno processo de investigação que levou ao impeachment de Fernando Collor de Melo, fez um belo documentário sobre a relação do brasileiro com a ética, principalmente quando se trata de lidar com a coisa pública. Em “Ética, alguém viu por aí?”, Lúcia Moraes vai revelando em vários cenários do cotidiano como se constrói a ética dos brasileiros na relação com a coisa pública. Em 1999, o genial cineasta Fernando Mozart dirigiu um curtametragem intitulado “Os outros”, em que ele expõe uma ideia central: nós brasileiros sempre achamos que, de um lado, só “o outro” é que é responsável por todo o caos e baderna (inclusive a corrupção) na sociedade; ou, do outro lado, que só “o outro” é que pode fazer algo para resolver isso. Mais recentemente, este tema também foi retomado em 2008 por um quadro no programa CQC, da Rede Bandeirantes, intitulado “Teste de Honestidade”, cujo foco é mostrar que a corrupção tão discutida na esfera pública é apenas um reflexo do mesmo tipo de prática que é amplamente difundida na sociedade. Em termos de pesquisa, uma das mais completas a este respeito é o livro “A Cabeça do Brasileiro”, de Alberto Carlos Almeida, resultado da Pesquisa Social Brasileira (PESB) realizada pela UFF em 2002 (o que o brasileiro pensa sobre jeitinho, malandragem, hierarquia, política, civismo, racismo etc.). É muito interessante ver esses insights do senso comum sendo traduzidos em análises estatísticas que nos ajudam a compreender este fenômeno. 
Esse mecanismo acabou gerando uma máquina tão imbricada na esfera pública do Estado brasileiro que, muitas vezes, a alegação das empresas é que negócios com órgãos estatais não são feitos sem que esse caminho perverso seja percorrido. Mas todos sabemos que não é bem assim! Afinal, o imbroglio é tamanho que todos os envolvidos (corruptos e corruptores) ganham e muito às custas da máquina do Estado.
Vejo como algo extremamente importante este braço da Operação porque enxergo uma lógica muito semelhante entre a corrupção e o narcotráfico e que orienta a prática de investigação da Polícia Federal: não adianta combater o corrupto porque, havendo o corruptor querendo que seus interesses prevaleçam (sobretudo quando envolve milhões), a cada corrupto preso aparecerão dezenas de outros na fila para receber gordas propinas dos corruptores. Mudam-se os atores, mas o cenário e os efeitos nocivos permanecem. É óbvio que é necessário limpar a máquina dos corruptos. Mas aparecerão outros se os corruptores não forem punidos exemplarmente. 
Em todo caso, com relação ao cenário das mídias sociais, invadidas por gritaria e protesto contra a corrupção na esfera política, eu fico me perguntando:
1) Onde estão as manifestações de indignação contra empresários podres e corruptos que dilapidam o patrimônio público, subornando funcionários públicos para obter vantagens bilionárias em contratos de estatais?
2) Onde estão os elogios e o reconhecimento à qualidade do trabalho investigativo da Polícia Federal que, como amplamente se divulgou durante a campanha eleitoral última, teve sua ação aprimorada por meio de instrumentos legais que permitiram a consolidação de sua atuação?
Talvez, pela nossa cínica relação com a Ética (que é sempre bom cobrar dos outros, mas para nós, é um pouco diferente), por levarmos vantagens nas nossas práticas mesquinhas cotidianas, não tenhamos assim tanto afinco para reconhecer o grande feito histórico que é, num país como o Brasil, colocar gente deste porte na cadeia. Continuamos a construir essa visão tacanha de colocar exclusivamente na esfera política (e, o que é pior, de forma ampla e generalizada) a responsabilidade por atos tão aviltantes de corrupção, fazendo vistas grossas ao que ocorre na esfera privada).

Talvez, um dia, como sociedade, aprendamos o grande valor que é respeitar a coisa pública (em todas as suas dimensões) para construir um país justo e com uma paz social tão necessária.

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