Estados criam dinheiro útil, mas abusam disso

Quando a teoria monetária moderna é verdadeira, ela não é original. Quando ela é original, não é verdadeira.
O Estado é a mais importante de todas as nossas inovações institucionais. Oferece a garantia última de nossa segurança. Mas seu poder também o torna assustador. Por isso, as pessoas às vezes fingem que ele é menos forte do que de fato é. Em uma área da economia, isso é especialmente verdadeiro: o dinheiro. O dinheiro foi criado pelo Estado. A teoria monetária moderna, um relato controverso dessa verdade, está correta em termos analíticos, dentro de seus limites. Mas o que está além de seus limites é crucial: o dinheiro é uma ferramenta poderosa, mas sujeita a abusos.
L. Randall Wray, da Universidade do Missouri-Kansas City, descreveu essas ideias em “Modern Monetary Theory”. Elas apresentam os seguintes elementos fundamentais.
Primeiro, os impostos propelem o dinheiro. Essa doutrina é conhecida como cartalismo. Os governos podem forçar seus cidadãos a usar o dinheiro que emitem porque é assim que as pessoas pagam seus impostos. O dinheiro do Estado, com isso, se tornará o dinheiro usado nas transações nacionais. Os bancos dependem do banco do governo —o banco central— como emprestador de última instância. Os “vales” dos bancos —a forma predominante de dinheiro nas economias atuais— são substitutos imperfeitos para o dinheiro soberano. São imperfeitos porque os bancos podem enfrentar falta de liquidez, se tornar insolventes ou falir. É por isso que crises bancárias são tão comuns.
Segundo, ao contrário do que afirma a sabedoria convencional, não existe relacionamento mecânico entre os passivos do banco central detidos pelos bancos (ou seja, reservas) e a criação de dinheiro bancário. Da crise financeira para cá, os balanços dos bancos centrais e as reservas dos bancos cresceram imensamente, mas os agregados monetários mais amplos não. A explicação é que o propulsor dominante da base monetária é a lucratividade dos empréstimos (ponderada pelo risco), e esta é alta nos momentos de expansão e baixa nos momentos de contração. A fraqueza do crédito também explica por que a inflação se manteve baixa.
Terceiro, os governos não precisam dar o calote em empréstimos que contraíram em suas moedas. O governo não precisa aumentar impostos ou captar dinheiro para manter seus pagamentos; existe a possibilidade de criar o dinheiro de que precisa. Isso torna simples para os governos operar em déficit, a fim de garantir o pleno emprego.
Quarto, apenas a inflação estabelece limites para a capacidade de gasto do governo. Mas se surgir inflação, o governo precisa reprimir a demanda, aumentando os impostos.
Por fim, os governos não precisam emitir títulos para bancar seus custos. O motivo para que realizem captação é administrar a demanda, alterando as taxas de juros ou a oferta de reservas aos bancos.
Essa análise é correta, até certo ponto. Também tem implicações para a política monetária. Um governo soberano sempre pode gastar para sustentar a demanda. Uma vez mais, a expansão do balanço do banco central não torna uma inflação alta mais provável, e muito menos inevitável. Alguns discípulos da Teoria Monetária Moderna argumentam que o poder de criar dinheiro deveria ser usado para oferecer uma garantia universal de emprego ou para financiar programas como o Green New Deal proposto pelo Partido Democrata nos Estados Unidos. Mas essas ideias não são derivadas da análise. Representam apenas sugestões sobre em que área o Estado deveria gastar.
Assim, quais os problemas da Teoria Monetária Moderna? Eles têm duas frentes: a econômica e a  política. Uma importante dificuldade em termos econômicos, que foi exposta com toda clareza pelas dolorosas experiências ocidentais da década de 1970, é que é difícil saber o que representa “pleno emprego”. Pode haver excesso de demanda em alguns setores ou regiões, e demanda deficiente em outros. O pleno emprego é uma faixa de flutuação bastante imprecisa, e não um ponto único.
Um erro econômico ainda mais grave é ignorar as expectativas que propelem o comportamento das pessoas. Suponha que os detentores do dinheiro temam que o governo esteja disposto a gastar em itens de alta prioridade, não importa o superaquecimento que isso possa causar na economia. Suponha que os detentores do dinheiro temam que o banco central também se torne inteiramente sujeito aos caprichos do governo (o que aconteceu com bastante frequência no passado). É provável, com isso, que eles decidam trocar o dinheiro por algum outro ativo, causando um colapso do câmbio, uma disparada nos preços dos ativos e demanda florescente por bens duráveis. Isso pode não conduzir a uma hiperinflação escancarada. Mas pode resultar em um surto de alta inflação, e essa inflação pode perdurar. O fato de que os proponentes da Teoria Monetária Moderna tenham por foco os balanços, e sua indiferença às expectativas que causam comportamentos, são dois grandes erros.
No fim de março, o Banco Central decidiu manter a taxa básica de juros da economia em 6,50% ao ano, marcando um ano desde que a Selic chegou ao menor patamar da história
Esses são erros econômicos, mas existe um erro político correlato e ainda maior, como argumentou Sebastian Edwards, da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Se os políticos acham que não precisam se preocupar com a possibilidade de um calote, e sim apenas com a inflação, sua tendência pode ser a de presumir que a produção pode subir muito mais, e o desemprego cair muito mais, sem provocar uma alta na inflação. Foi o que aconteceu em muitos países ocidentais a década de 1970. A mesma coisa aconteceu com ainda mais frequência nos países em desenvolvimento, especialmente na América Latina. Mas as consequências econômicas e sociais de grandes surtos de inflação podem ser muito destrutivas.
E o mesmo se aplica ao alto desemprego. Assim, ao administrar uma economia monetária moderna, é preciso evitar dois grandes erros. Um é depender demais da demanda do setor privado, já que ela pode desaparecer facilmente como resultado de expansões e contrações altamente destrutivas. O erro oposto é confiar demais em demanda puxada pelo governo, já que ela também pode gerar expansões e contrações destrutivas.
A solução, quase sempre, é delegar os poderes necessários aos bancos centrais independentes e às autoridades regulatórias das finanças. Mas os proponentes da Teoria Monetária Moderna estão certos ao afirmar que, durante um período de demanda privada estruturalmente frágil (como no Japão desde 1990), ou em uma contração profunda, um governo soberano precisa e pode agir, por conta própria ou em cooperação com o banco central, para contrabalançar a fraqueza do setor privado. Nesses casos, o governo não deveria temer os limites, e deveria entrar em ação sem hesitar.

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/martinwolf/2019/05/estados-criam-dinheiro-util-mas-abusam-disso.shtml

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