Que tal ler sobre um homem que viveu 101 anos e morreu Imortal? Que criou uma ciência (ou ao menos um ramo frondoso dela)? Que escreveu um livro clássico, acima de tudo inclassificável? Que deu aulas na USP, em Nova York e Paris, e aprendeu muita coisa com gente que andava pelada e dormia no chão? Um homem cujo nome era música, calça e filosofia, e por vezes um risco mortal?
Salivando? Então basta percorrer as 782 feéricas páginas da biografia Lévi-Strauss, de Emanuelle Loyer. A autora é especialista em história intelectual da Universidade Sciences-Po, em Paris. Confirmando a barbada, esta obra embolsou o prêmio Femina de ensaio, em 2015.
Um dos supremos intelectuais do século 20, Claude Lévi-Strauss (1908-2009) nasceu em Bruxelas, mas é tão francês quanto Astérix. De origem obviamente judaica, o sobrenome de Lévi-Strauss sempre deu pano para mangas. Em 1940, com a França sob ocupação alemã, ele foi a Vichy pedir autorização para voltar à capital, onde nazistas saíam pelo ladrão. O funcionário pestanejou: “Com esse nome, o senhor quer ir para Paris?” Caindo a ficha, Claude se mandou para os EUA, onde foi aconselhado pelos diretores da New School a usar L. Strauss em vez de Lévi-Strauss – “para que o senhor não seja confundido com uma marca de jeans”. Também foi confundido com o autor de valsas vienenses Richard Strauss. E com o filósofo Leo Strauss. Hoje é inconfundível.
Claude, embora tenha declinado bater o ponto na École Normale Supérieure, poleiro dos prodígios da geração (Sartre, Aron, Merleau-Ponty, Paul Nizan), cursou filosofia e direito – já na etnologia foi um autodidata. Ainda na faculdade, simpatizou com os princípios do socialismo e fez militância estudantil. Mas, por feitio e convicção, foi sempre um socialista insociável, que nunca sujeitou tudo a um materialismo farisaico. E saudou no ato, em 1933, o romance Viagem ao Fim da Noite, do endiabrado reacionário Louis-Ferdinand Céline. Isso quando a esquerda ortodoxa estava embevecida com o Realismo Socialista de Jdánov.
Naquela época, apesar de recém-casado, o professor do ensino médio Lévi-Strauss se sentia como se tivesse perdido o bonde e a esperança. Até que ouviu um som talismânico. “Minha carreira foi decidida num domingo de 1934, às 9h da manhã, com um toque de telefone”. Era um convite para dar aulas de sociologia na engatinhante USP, com a isca de que “há muitos índios na periferia de São Paulo”. Não havia. Depois, o embaixador brasileiro na França jogou água no chope: “Não há mais índios no Brasil”. Havia.
Lévi-Strauss tinha 26 anos. Ficou no Brasil quatro anos, lecionando em francês, “a segunda língua dos brasileiros escolarizados”. Em 1934, São Paulo contava mais de 1 milhão e 200 mil habitantes e crescia a jato (50 anos antes, não passava dos 100 mil!). Antes, fez escala no Rio de Janeiro, com o qual embirrou: “Os trópicos são menos exóticos do que antiquados.” Comparou os morros cariocas a “dedos numa luva apertada”. Em Sampa, o primeiro arranha-céu que vê na vida: o edifício Martinelli. A delegação de professores europeus era uma espécie de seleção galáctica de dentes de leite: entre outros, Fernand Braudel (depois um dos pais da “história das mentalidades”), Roger Bastide (que traduzirá Casa Grande e Senzala) e o grande poeta italiano Giuseppe Ungaretti.
Na USP, Lévi-Strauss dá seis aulas de 55 minutos por semana, de março a novembro. Ele e sua mulher Dina, com a mesma formação acadêmica do marido, viram parças da intelligentsia local, sobretudo Mário de Andrade. O regresso à França coincide com o início da 2.ª Guerra Mundial. Lévi-Strauss só voltará ao Brasil em 1985, com o presidente Mitterrand. Mas dirá: “O Brasil representa a experiência mais importante da minha vida”.
Em 1940, se exila nos EUA, no mesmo cargueiro em que enjoa André Breton. Em NY, rola um encontro decisivo: com Roman Jakobsson, que lhe apresenta o estruturalismo. Daí nascerá a antropologia estrutural, postulando uma configuração que ordene a entropia dos fatos, através da análise de mitos e laços de sangue. Seja a sociologia seja a antropologia já refletiam uma “linhagem francesa”, com Émile Durkheim e Marcel Mauss. Em meados do século 20, o etnocentrismo era torpedeado: já não se tratava do “fardo do homem branco”, ou de ensinar canibais a comer de garfo e faca – em vez disso, o elogio da diversidade e do interlocutor. Até porque, como observou Aron: “Uma parte do melhor do Ocidente acabou nos fornos crematórios de Auschwitz.” Tratava-se, isso sim, de tentar conciliar o sensível e o inteligível, natureza e cultura. A influência da linguística em Lévi-Strauss nunca extrapolou – como aconteceu, por exemplo, com Jacques Derrida e sua famosa frase desconstrucionista: “não há nada fora do texto” (a não ser, claro, as interpretações de Derrida).
Em 1955, jorra a lava verbal de Tristes Trópicos, uma obra metamórfica, porosa, meio budista meio lunática – uma autoanálise que bate na trave da catarse absoluta. O título, com sua aliteração lírica e soturna, levanta a bola para o incipit rabugento, que chuta o balde da premissa antropológica: “Odeio viagens e exploradores.” Relatando o convívio com índios caduveos, bororos e nambiquaras, é para muitos o mais importante livro de um estrangeiro sobre o Brasil. E é a chef d’oeuvre de Lévi-Strauss, um clássico que funde literatura e ciência, espécie e indivíduo, eternidade e devir – aliás, o próprio título é de um romance que o autor quis escrever e depois amarelou.
Tristes Trópicos, com suas quase 500 páginas, foi concluído em cinco meses, numa máquina de escrever de teclado alemão comprada numa biboca em São Paulo. Tentar definir essa obra é como empunhar vento (por ela ser praticamente tudo, menos um pastel de vento). A biógrafa Emanuelle Loyer faz uma airosa tentativa, ao compará-la com o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. Quando Tristes Trópicos saiu, Sartre (cujo existencialismo Lévi-Strauss tinha esculhambado) declarou-se “deslumbrado”.
É uma narrativa encantada, por vezes amarga como um limão verde. Se alguém quer ser etnólogo pensando em Indiana Jones, pode tirar o cavalinho da chuva. “Não há lugar para a aventura nessa profissão. Temos de nos levantar com o dia, permanecer acordado até que o último índio esteja dormindo, e de o vigiar durante seu sono. Temos de nos esforçar para passar despercebidos, estando sempre presentes; ver tudo, reter tudo, anotar tudo, dar mostras de uma indiscrição humilhante, mendigar informações de um garoto ranhoso”. Sim: a antropologia às vezes é um programa de índio.
É evidente a tentação do autor pelo texto literário, sem prejuízo do rigor científico (neste aspecto, lembra Primo Levi). Em 1973, Lévi-Strauss é eleito para Academia Francesa. Em 2004, a Bibliotheque de la Plêiade (coleção da Gallimard que canoniza os clássicos da literatura francesa) abre sua primeira exceção para um não literato: Claude Lévi-Strauss – e com o autor ainda vivo. É a vantagem da arte sobre a ciência: nos melhores casos, aquela caduca mais devagar e, nas obras-primas, talvez nunca. O Édipo de Sófocles continua novinho em folha – já a teoria geocêntrica de Ptolomeu é uma curiosidade histórica.
Talvez a chave para Tristes Trópicos (e para a vida do seu autor) resida em sua última frase, na forma de um felino enigmático e elegante mas também expressivo: “Tal como o indivíduo não está só no grupo e cada sociedade não está só entre as outras, o homem não está só no universo. Assim que o arco-íris das culturas humanas tiver acabado de afundar-se no vazio cavado pelo nosso furor, este arco tênue permanecerá. Este favor que toda a sociedade ambiciona, onde ela situa o seu ócio, o seu prazer, repouso e liberdade, e que consiste em captar a essência do que ela foi e continua a ser, aquém do pensamento e além da sociedade, na contemplação de um mineral mais belo que todas as nossas obras; no perfume mais sábio que os nossos livros, respirado no âmago de um lírio; ou no piscar de olhos, cheio de paciência, serenidade e perdão recíproco que um entendimento involuntário permite, por vezes, trocar com um gato.”