Domínio dos EUA no setor de serviços perde força

Nos últimos cinquenta anos, os EUA evoluíram a partir de uma superpotência industrial para a condição de campeões inquestionáveis da economia global de serviços. De 2003 a 2015, o superávit comercial dos EUA na balança de serviços como assistência médica, ensino superior, processamento de royalties e de pagamentos quase sextuplicou, para US$ 263,3 bilhões.
Mas desde então esse crescimento empacou. As exportações de serviços praticamente não aumentaram nos nove primeiros meses de 2019, enquanto as importações de serviços pelos EUA tiveram elevação de 5,5%. O superávit em serviços, que estava em US$ 178,5 bilhões até o fim de setembro, caiu 10% se comparado a igual período do ano passado, e caminha para a maior queda anual desde 2003.
Parte da fragilidade das exportações americanas de serviços provavelmente reflete fatores cíclicos, como a valorização do dólar ou a desaceleração das economias externas. Mas economistas dizem que é difícil de atribuir a retração do superávit exclusivamente a essas questões. Eles apontam para outras forças – algumas de natureza política – que estão deprimindo as exportações ao mesmo tempo em que fazem com que os consumidores e empresas americanos comprem mais serviços externos.
Muitos fatores dependem da manutenção ou reversão dessa tendência. Embora os superávits ou déficits comerciais não sejam intrinsecamente bons ou ruins, eles refletem as vantagens comparativas de um país na economia mundial. A excelência dos EUA nas instituições de ensino superior, em tecnologia, finanças e consultoria cria milhões de empregos, muitas vezes de alta qualificação, e contribui, na prática, para custear importações de mercadorias como smartphones, automóveis e vinho.
“É o cerne do que os EUA são realmente bons em fazer”, disse Michael Pearce, da consultoria Capital Economics. “São todas áreas nas quais os EUA são líderes mundiais, e é também o que puxa um crescimento mais essencial, do lado da oferta, na economia.”
A Universidade do Oeste de Kentucky (WKU) constitui um exemplo. Entre 2011 e 2015 seu cadastro de estudantes internacionais matriculados mais do que duplicou, para mais de 1.500, cada um pagando ao menos US$ 40 mil em anuidade. Esses alunos ajudaram a faculdade equilibrar seu orçamento e, ao mesmo tempo, construir novas residências estudantis, reformasse seu grêmio estudantil e outras melhorias, apesar de o Legislativo estadual ter reduzido as verbas destinadas à universidade.
Mas, desde 2015, as matrículas internacionais caíram quase 50%, pressionadas por subsídios menos generosos concedidos pelos governos estrangeiros, pela concorrência oferecida por outras faculdades estrangeiras e por uma percepção, no exterior, de que os EUA se tornaram menos seguros e menos receptivos. As matrículas internacionais sempre subiam, disse John Sunnygard, reitor associado da WKU para aprendizagem global e assuntos internacionais. “Nunca vimos cair. Começamos a ver queda e não acreditamos.”
As exportações de serviços podem estar sendo prejudicadas pela tensão entre os EUA e seus parceiros comerciais. “A instabilidade criada no mundo comercial,
principalmente pela escalada de tarifas, mas também pela postura dos EUA em relação ao comércio exterior, teve um efeito negativo”, disse Christine Bliss, ex- assistente do representante de Comércio dos EUA no governo de Barack Obama.
O acordo comercial entre EUA, México e Canadá, que aguarda ratificação pelo Congresso, incorpora sólidas cláusulas sobre serviços, e o governo Donald Trump tem pressionado por uma melhor proteção à propriedade intelectual em suas negociações com a China. Mas o avanço na direção de acordos comerciais de grande escala em serviços tem sido tímido. Em suas políticas e em sua retórica, o presidente Trump tende a focar em produtos agrícolas e industriais, raramente nos serviços.
Os maiores produtos de exportação dos EUA não são automóveis ou soja, e sim serviços que envolvem viagens: gastos dos visitantes estrangeiros em comida, hospedagem, taxas de instituições de ensino, assistência médica e outros itens. Essa exportação caiu 0,6% nos nove primeiros meses deste ano, para US$ 160,5 bilhões.
A guerra comercial com a China parece ter impacto. As autoridades de imigração dos EUA intensificaram o rigor dos exames dos pedidos de visto de estudantes, turistas e até pacientes chineses que buscam tratamento em hospitais americanos. Pequim orientou seus cidadãos neste ano a reconsiderar a possibilidade de visitar ou de estudar nos EUA devido à maior severidade das vistorias de fronteira e a frequentes “disparos, assaltos e roubos” nas ruas americanas.
As exportações de outros serviços, como os voltados para propriedade intelectual e para transportes, também caíram neste ano em comparação a 2018.
Em setembro, a FedEx registrou queda da receita e dos lucros, e revelou planos de tirar de circulação ou estacionar dezenas de aviões de carga devido às crescentes tensões comerciais e ao desaquecimento da economia mundial.
A gigante chinesa de telecomunicações Huawei reduziu suas compras de produtos e serviços tecnológicos americanos neste ano, disse um executivo da empresa ao “The Wall Street Journal”. A companhia, além disso, está desenvolvendo um sistema operacional para concorrer com o Android do Google e o iOS da Apple, que hoje dominam o mercado chinês de smartphones. A Huawei também começou a fabricar smartphones sem chips americanos.
Outros países estão mais competitivos em setores de serviços até agora dominados pelos EUA. Desde 2004, o número de universidades americanas classificadas entre as 200 melhores do mundo caiu de 62 para 46, segundo o boletim anual britânico QS World University Rankings. A China ultrapassou os EUA como a maior produtora de artigos científicos e técnicos em 2016 e é líder mundial em pedidos de patentes, marcas registradas e em “design” industrial.
“Talvez tenhamos alcançado um ponto de diminuição dos retornos”, disse Chris Bakewell, diretor da divisão de propriedade intelectual da consultoria Duff & Phelps, sobre a supremacia tecnológica mundial dos EUA.
Com o aperfeiçoamento dos médicos estrangeiros – muitos deles formados em faculdades americanas – no tratamento do câncer e das doenças cardíacas, cidadãos prósperos de outros países terão menos motivos para buscar tratamento em hospitais americanos. Por outro lado, mais americanos buscam assistência médica e faculdades de medicina no exterior para contornar a escalada de custos nos EUA.

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2019/12/03/dominancia-dos-eua-no-setor-de-servicos-perde-forca.ghtml

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