Autoridades chinesas estão à caça de impostos não pagos por empresas e pessoas físicas que datam de décadas, como parte de uma iniciativa do governo para sanar déficits orçamentários gigantescos e resolver uma crise de dívidas que fica cada vez maior.
Mais de 12 empresas de capital aberto informaram ter recebido cobranças de milhões de dólares em impostos passados, em meio à intensificação dos esforços para arrumar as contas de governos locais, abaladas pela crise no mercado imobiliário, que derrubou as vendas de concessões de terras, uma grande fonte de arrecadação.
Novas políticas adotadas após um recente encontro de altas autoridades do Partido Comunista defendem a expansão dos recursos fiscais locais. Também advogam que os governos locais reforcem sua “autoridade de gestão fiscal e melhorem sua gestão de dívida”.
A dívida dos governos locais é estimada em até US$ 11 trilhões, se incluído o valor que é devido por entidades de financiamento usadas por esses governos e que não consta das estimativas oficiais. Entre as mais de 300 reformas delineadas pelo Partido Comunista há promessas de que as dívidas locais, um dos maiores riscos ao sistema financeiro da China, passem a ser mais bem monitoradas e administradas.
Tudo isso é mais fácil de dizer do que fazer, e especialistas questionam o rigor com o que o partido cumprirá as promessas de aperfeiçoar o regime tributário e de equilibrar melhor o controle da arrecadação do governo.
“Eles não estão lidando com os problemas existentes da dívida local, nem com as restrições à capacidade fiscal”, disse Logan Wright, do Rhodium Group, uma firma independente de análises. “Mudar a forma como arrecadação e as obrigações de gastos [públicos] são divididas entre o governo central e os locais é digno de nota, mas eles já prometeram isso antes.”
A pressa para cobrar impostos atrasados há tanto tempo mostra a urgência dos problemas.
O conglomerado chinês de alimentos e bebidas VV Food & Beverage contabilizou em junho uma cobrança de 85 milhões de yuan (US$ 12 milhões) relativa a impostos de até 30 anos atrás. A Zangge Mining, que tem sede no oeste da China, comunicou ter recebido duas cobranças, em um total de 668 milhões de yuans (US$ 92 milhões), por impostos de até 20 anos atrás.
Há tempos os governos locais sofrem de falta de dinheiro, uma vez que o governo federal fica com a maior parte da arrecadação tributária, mas transfere uma quantia limitada aos governos locais, que são responsáveis por pagar cerca de 80% de suas despesas, como salários, serviços sociais e investimentos em infraestrutura como estradas e escolas.
As pressões têm aumentado diante da desaceleração da economia e do aumento dos custos decorrentes da política de “covid zero” adotada durante a pandemia.
Economistas alertam há muito tempo para a insustentabilidade da situação. Argumentam que a China precisa reforçar a arrecadação tributária para equilibrar os orçamentos no longo prazo.
Sob o comando de Xi Jinping, o governo reduziu o imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas e os impostos sobre valor agregado para ganhar apoio, impulsionar o crescimento econômico e incentivar o investimento — muitas vezes de maneiras que favoreceram os ricos, segundo especialistas acadêmicos em impostos.
De acordo com a maioria das estimativas, apenas cerca de 5% dos chineses pagam imposto de renda pessoal, bem menos do que em muitos outros países. Segundo dados do governo, isso representa pouco menos de 9% da arrecadação tributária total. Além disso, a China não tem um imposto de abrangência nacional sobre os imóveis.
O ministro das Finanças da China, Li Fo’an, disse à agência de notícias oficial “Xinhua” que as reformas mais recentes darão aos governos locais mais recursos e mais poder sobre a arrecadação de impostos, ao ajustar a porcentagem dos impostos que fica com eles.
“O governo central não é responsável por muitos dos gastos [públicos locais], então não sente a dor de cortar impostos”, disse Cui Wei, professor de política tributária chinesa e internacional na Universidade da Colúmbia Britânica.
A eficácia das reformas dependerá de como elas serão colocadas em vigor, segundo Cui, que é cético em relação à proposta de fazer com que o governo federal seja responsável por uma maior parte dos gastos públicos. Isso “exigirá um aumento de pessoal do governo central, e isso é uma questão organizacional, não apenas uma questão de gastos”, disse. “Eu não teria muitas expectativas”, disse Cui.
As novas cobranças de impostos tiveram forte impacto em algumas empresas e prejudicaram ainda mais a confiança empresarial, que já estava abalada. A Ningbo Bohui Chemical Technology, em Zhejiang, na costa leste da China, suspendeu a maior parte da produção após o fisco local exigir 500 milhões de yuans (US$ 69 milhões) em impostos atrasados sobre certos produtos químicos. A empresa anunciou demissões e cortes de salários para lidar com a situação.
De acordo com especialistas, a forma arbitrária como os impostos são cobrados, com períodos de tolerância seguidos de repentinas ofensivas fiscalizadoras, é contraproducente e desencoraja as empresas de investir ou contratar exatamente quando mais precisam.
“Quando os donos de empresas estão se sentindo inseguros, como poderá haver mais crescimento no investimento privado na China?”, disse Chen Zhiwu, professor de finanças na escola de negócios da Universidade de Hong Kong. “Uma desaceleração econômica é inevitável.”
A Agência Estatal de Tributação da China nega ter lançado uma iniciativa nacional, já que isso poderia implicar que a aplicação das leis no passado era negligente. As autoridades fiscais “sempre foram rigorosas na prevenção e investigação da cobrança de impostos e de práticas tributárias ilegais”, destacou o órgão em comunicado em julho.
Diante da dificuldade dos governos locais para fechar as contas, alguns criaram centros de operações conjuntas, administrados pela polícia e por agências locais de impostos, para cobrar tributos atrasados. A “AP” apurou que foram abertos centros desse tipo em pelo menos 23 províncias desde 2019.
Essas ações vêm tendo como alvos tanto pessoas físicas quanto jurídicas. Dezenas de cantores, atores e celebridades da internet foram multados em milhões de dólares por evitar o pagamento de impostos nos últimos anos, de acordo com uma análise de comunicados do governo.
A celebridade da internet Huang Wei, mais conhecida pelo pseudônimo Weiya, foi multada em 1,3 bilhão de yuan (US$ 210 milhões) por sonegação fiscal em 2021. Ela se desculpou e escapou de uma ação judicial ao pagar a multa, mas suas contas nas plataformas de relacionamento social on-line foram suspensas, um duro golpe para os negócios dela.
A caça para elevar a arrecadação não se limita aos impostos. Nos últimos anos, as autoridades locais têm sido criticadas por aplicar grandes multas a motoristas e vendedores ambulantes, de forma similar ao que fazem cidades como Chicago ou São Francisco, que arrecadam milhões com multas de estacionamento.