Como o BC dos EUA tornou-se um ‘reality show’

Financial Times; Houve um tempo em que os banqueiros centrais dos Estados Unidos eram conhecidos por manter a boca fechada. Ao controlar a inflação na década de 1980, Paul Volcker, então presidente do Federal Reserve, assumiu uma pose pública tão inescrutável que o jornalista William Greider intitulou seu relato best-seller sobre o papel do banco central nesse período de “Segredos do Templo”.

Volcker era “o tipo forte e silencioso”, escreveu Greider, conhecido por sua autoconfiança intelectual “assustadora” e modos “intimidantes” ao enfrentar comitês do Congresso antagônicos. “Envolto em fumaça de charuto, Volcker balançava a cabeça cansado e descartava todas as acusações como simplistas. As perguntas hostis eram desviadas com respostas desconexas e evasivas que não admitiam nada.”

As salas cheias de fumaça desapareceram há muito tempo em Washington, assim como aquela velha estratégia de comunicação do Fed. À medida que os banqueiros centrais dos EUA enfrentam o aumento de inflação mais sério desde a época de Volcker, eles se tornaram incansavelmente falantes, aparecendo no palco e na tela para discutir os dados econômicos mais recentes e as implicações para o Comitê Federal do Mercado Aberto (Fomc na sigla em inglês).

O resultado é o equivalente de Wall Street a “Keeping Up with the Kardashians”, um reality show imperdível na TV. Para navegar nos mercados, os investidores precisam acompanhar as cabeças falantes do Fed.

Ainda assim, alguns claramente têm saudade do tempo em que seus empregos eram mais que analisar os pronunciamentos do presidente Jay Powell e seu elenco disperso de personagens do banco central.

“O Fed balançou radicalmente o pêndulo, da opacidade dos velhos tempos para o excesso de transparência atual”, disse David Rosenberg, ex-economista da Merrill Lynch que hoje dirige uma firma de pesquisas que leva seu nome. “Eles estão aparecendo na Bloomberg TV, CNBC, Fox Business News. Tudo o que fazem é falar sobre política.”

Assim como no caso das Kardashians, há muitos banqueiros centrais nos Estados Unidos –não esqueça que existem 12 Feds regionais além dos figurões em Washington. Mas os participantes do mercado veem tantas dessas pessoas com tal frequência que sentem como se as conhecessem. Assim que eles terminam de falar, as línguas se agitam em Wall Street sobre as implicações para o aumento das taxas de juros.

Um caso nesse sentido ocorreu alguns dias atrás, após um discurso da “pomba” Lael Brainard, que faz parte do conselho de governadores do Fed e aguarda a confirmação do Senado para ser vice-presidente. Seus comentários foram vistos como um sinal de que ela estava se movendo na direção de membros “falcões” do Fomc como James Bullard, o extrovertido presidente do Fed de St. Louis. Os investidores fizeram aumentar o rendimento dos títulos, acreditando que o jogo de palavras público indicava uma mudança no debate interno no Fomc.

“Isso dá uma ideia melhor de onde está o contorno do comitê”, disse Robert Tipp, estrategista-chefe de investimentos e chefe de títulos globais na PGIM Fixed Income. “Os observadores do Fed ficam obcecados com a narrativa de cada orador, tentando descobrir não apenas a visão intermediária do comitê, mas –mais importante, neste ciclo– quem é o líder, quem está à frente da curva, quem está puxando o comitê, com que rapidez e a que distância.”

A abordagem atual do Fed para se comunicar com os participantes do mercado é sua maneira de lidar com o que poderia ser chamado de problema de 1994. Em fevereiro daquele ano, o banco central dos EUA pegou investidores de todo o mundo desprevenidos ao aumentar as taxas pela primeira vez em cinco anos –em 0,25 ponto percentual, para 3,25%.

Os preços dos títulos dos EUA caíram e o índice S&P 500 caiu 9% no mês seguinte. Em meio à turbulência que se seguiu, o condado de Orange, na Califórnia, que tinha usado dinheiro público para fazer apostas complexas de que as taxas de juros permaneceriam baixas, pediu falência.

Nos anos que se seguiram, o banco central dos EUA se esforçou para evitar surpreender os mercados, o que faz sentido. Deslocamentos do tipo de 1994 obviamente complicam a missão do Fed de promover a estabilidade de preços e o máximo de emprego sustentável.

Ian Lyngen, chefe de estratégia de taxas dos EUA na BMO Capital Markets, disse acreditar que a crescente transparência do Fed é “uma das razões pelas quais os rendimentos totais são tão baixos”. Ao dizer regularmente aos investidores o que pensam, as autoridades do Fed reduzem a incerteza sobre como reagirão a futuras mudanças na economia, explicou ele.

Rosenberg rebate que a sensibilidade do Fed aos sentimentos dos investidores aponta para um “triste estado de coisas”, refletindo a enorme importância dos preços dos ativos para a saúde da economia. Os funcionários do Fed que aparecem nas redes financeiras “não estão falando com a Rua Principal”, disse ele. “Eles estão falando com gestores de portfólios.”

Toda essa conversa também tem custos de oportunidade, como dizem os economistas. Rosenberg disse que era habitualmente bombardeado por pedidos de clientes para explicar a última declaração de um funcionário do Fed. Ele diz que responde, mas teme que tenha sido desviado de um trabalho mais útil –perdendo alguma outra coisa importante. O mesmo poderia ser dito sobre todos nós.

https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/05/como-o-federal-reserve-tornou-se-um-reality-show.shtml

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