Como a crise dos refugiados da Ucrânia pode mudar a Europa

Lutsk, no oeste ucraniano, não fica perto das linhas de frente, mas está sob alcance das bombas russas. Em meados de março, os russos atacaram o aeroporto da cidade pela segunda vez. A designer de interiores Yana Supruniuk, de 29 anos, pôde ver as bolas de fogo pela janela de seu apartamento. Quando ela assiste ao vídeo que fez em seu celular no momento do ataque, ainda parece chocada.

Às 5 horas de 23 de março, depois de dias de indecisão, ela partiu com uma amiga em direção à fronteira polonesa. Voluntários as recolheram e as transportaram para a estação ferroviária central de Varsóvia. A dupla entrou na fila para obter um bilhete de trem para Berlim, onde um conhecido havia concordado em lhes dar abrigo.

Supruniuk e sua companheira de viagem estão entre as mais novas adições a uma colossal onda de refugiados em fuga da Ucrânia, que, segundo informou o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados no dia 30, ultrapassa 4 milhões de pessoas. Isso sem contar os 6,5 milhões de deslocados dentro da Ucrânia pela invasão da Rússia.

Aproximadamente um quarto da população ucraniana foi forçada a deixar suas casas. Se a guerra se arrastar e os homens com menos de 60 anos, atualmente impedidos de deixar o país, começarem a se juntar às mulheres e crianças no exterior, o número de refugiados poderia mais que triplicar. Isso colocaria o êxodo ucraniano entre os maiores da história, comparável ao provocado pela 1.ª Guerra.

Esse fluxo já está entre os mais velozes, com cerca de 1 milhão de pessoas deixando o país por semana nos estágios iniciais da guerra. Apesar desse ritmo ter diminuído recentemente para menos da metade, a pressão sobre governos, agências da ONU e ONGs é imensa. “Estamos construindo a ponte ao mesmo tempo que a atravessamos”, afirma um funcionário da ONU.

Os efeitos na Europa são altamente incertos, mas provavelmente serão profundos. Muito depende de quanto tempo pessoas como Supruniuk, que espera poder retornar para sua casa dentro de semanas, seguirem refugiadas. Se, como parece provável, o conflito continuar e o fluxo de migrantes aumentar, essas pessoas transformarão de maneira duradoura as políticas e economias na Europa, assim como o pensamento a respeito de migração no continente. Até aqui, a resposta do Ocidente tem sido iluminada e generosa. Mas isso pode mudar se governos administrarem mal a acolhida e a integração dos refugiados, e a desilusão e a fadiga se fizerem sentir.

Esta crise já contrariou suposições a respeito da maneira com a qual a Europa reage a grandes fluxos de imigrantes. O êxodo ucraniano tem quase o triplo do tamanho da onda de refugiados sírios e de outros países que atingiu a Europa em 2015. Alemanha e Suécia foram acolhedoras no início, mas depois houve um aumento no apoio a políticos anti-imigração em toda a Europa. Isso levou a um endurecimento nas fronteiras europeias e um acordo com a Turquia para evitar que refugiados sírios seguissem para outras partes da Europa fez com que solicitantes de asilo que chegavam de barco fossem “empurrados de volta” e ocasionou contestações de políticos até sobre o conceito de asilo.

Em resposta à crise ucraniana, a Europa estendeu um tapete de boas-vindas metafórico e literal. No dia 3, a União Europeia invocou pela primeira vez sua diretriz de proteção temporária, concedendo aos ucranianos direito de viver, trabalhar e receber benefícios em 26 dos 27 países-membros do bloco (a Dinamarca, que exerce uma cláusula de exclusão, aprovou uma lei de proteção similar).

Os ucranianos não passarão pelo processo arrastado e incerto de solicitação de asilo que aguardava aqueles que chegaram em 2015, nem pelos campos de confinamento a que alguns refugiados foram submetidos. Alguns dos países que antes estavam entre os mais avessos aos solicitantes de asilo estão agora entre os principais destinos dos ucranianos. A Polônia abrigou 2,2 milhões de migrantes. A Hungria, cujo primeiro-ministro, Viktor Orbán, foi o primeiro líder europeu a construir uma cerca para manter refugiados fora de seu país, em 2015, aceitou 340 mil ucranianos.

Os EUA estão se juntando ao movimento. No dia 24, o presidente Joe Biden disse que seu país aceitaria até 100 mil refugiados ucranianos e colaboraria com US$ 1 bilhão para ajudar a Europa a lidar com o fluxo. O Canadá, que abriga a maior diáspora ucraniana depois da Rússia, afirmou que aceitará todos os ucranianos que quiserem entrar.

Acolhimento

Centenas de milhares de europeus ofereceram quartos de suas residências para ucranianos que passam necessidade. O governo da Polônia encoraja essa generosidade oferecendo aos anfitriões 40 zloty (US$ 9) por dia para cada refugiado que eles abrigam por um prazo de até dois meses. O Reino Unido está oferecendo £ 350 (US$ 460) por mês para cada residência que oferece abrigo, apesar da proibitiva burocracia do país dificultar as coisas para muitos ucranianos que tentam entrar. A Itália, que possui uma grande diáspora ucraniana, também tem sido acolhedora. Na Província de Modena, no norte italiano, a população de origem ucraniana havia saltado de 5 mil antes da guerra para 7,2 mil até o dia 23. As autoridades estão matriculando as crianças refugiadas em escolas locais.

O contraste com a recepção aos sírios, em 2015, não se deve apenas à pele mais clara e à cristandade da maioria dos ucranianos, apesar desses fatores certamente comporem parte da explicação do fenômeno. Deve-se também ao fato de que o acolhimento a esses refugiados é parte de uma mobilização decorrente de uma guerra que ocorre na própria Europa, na qual a Otan e a UE, apesar de não serem combatentes diretos, tomam parte apaixonadamente. Ativistas defensores de direitos humanos rezam para que o espírito de acolhimento perdure na Europa além desta guerra e, por fim, se amplie a refugiados em fuga de conflitos mais distantes. “Este é um momento pedagógico”, afirma Harlem Désir, da ONG Comitê Internacional de Resgate.

Mas essas esperanças dependem de uma integração bem-sucedida dos ucranianos aos países que os acolhem pelo tempo que for necessário – que está longe de ser garantida. Os vizinhos mais próximos da Ucrânia já sentem a pressão. A Moldávia, que recebeu 370 mil refugiados, o que equivale a um décimo de sua população, está sobrecarregada. A maioria dos ucranianos pretende seguir a jornada para outros países, mas um número maior do que o esperado permanece no país, em parte porque os moldavos falam russo. Refugiados mais recentes, que tendem a ser mais pobres e ter menos parentes na Europa, também podem ficar em números maiores. A Moldávia é um parque de diversões de traficantes de pessoas, que podem se fingir de voluntários que pretendem levar pessoas como Supruniuk para a segurança.

Partes da Polônia também estão se abatendo. Cerca de 300 mil refugiados chegaram a Varsóvia, a capital, aumentando sua população em 17%. Mais de 100 mil estão na Cracóvia, a segunda maior cidade do país, habitada normalmente por 780 mil pessoas. “Quanto mais gente vier, piores serão as condições”, afirma o prefeito de Varsóvia, Rafal Trzaskowski. Na estação ferroviária da cidade, um grande mapa impresso em azul e amarelo, as cores da bandeira ucraniana, mostra 20 cidades polonesas e os tempos de viagem até lá. O texto encoraja os refugiados a “não ter medo” de seguir viagem para as cidades menores.

Trzaskowski considera necessário “um sistema europeu ou até global” para transportar os refugiados para lugares com capacidade de acomodá-los. Aproximadamente três quartos dos poloneses concordam com ele, segundo uma pesquisa recente, apesar de o governo polonês se esforçar para afirmar que os refugiados devem decidir por conta própria onde pretendem se estabelecer. A voz de Trzaskowski compõe um coro: Annalena Baerbock, a ministra alemã de Relações Exteriores, propõe “polos humanitários” para distribuir refugiados entre os países da UE e os EUA, assim como uma ponte aérea para envio de ajuda à Moldávia. O que é necessário, afirma Désir, é um mecanismo para combinar o grande número de refugiados procurando abrigo à grande disponibilidade da Europa em aceitá-los antes que esse entusiasmo se esvaia.

‘Boas-vindas’

Países na rota dos refugiados de 2015, da Grécia à Bélgica, melhoraram muito sua capacidade de registrá-los e processá-los. Alguns, como a Alemanha, aprovaram leis e criaram instituições para integrar refugiados. As escolas de Berlim, por exemplo, estão retomando “aulas de boas-vindas”, apresentando os recém-chegados à língua alemã e ao estilo de vida do país. Mas desde que os procedimentos de asilo foram dispensados, essa responsabilidade tem recaído imediatamente sobre ministérios e municipalidades, que não estão acostumados a súbitos aumentos de demanda por serviços. Na Bélgica, que espera cerca de 200 mil ucranianos, “agências responsáveis por benefícios de bem-estar social estão em pânico”, afirma Hanne Beirens, do Instituto de Política de Migração, em Bruxelas.

Para economias, refugiados podem ser tanto um fardo quanto um trunfo. O Banco Goldman Sachs estima que os quatro maiores países da UE gastarão o equivalente a quase 0,2% de seu PIB para dar apoio ao fluxo migratório, assumindo que 4 milhões de refugiados cheguem à região. É um montante modesto, mas ocorre juntamente com outros gastos relacionados à guerra. Tudo considerado, os déficits de orçamento dos quatro países deverão aumentar algo equivalente a 1,1% de seu PIB este ano.

Num sentido mais amplo, o cronograma é propício. O índice de desemprego na zona do euro caiu para 7%, um nível recorde, no fim do ano passado. Na Alemanha e na Polônia a taxa de desemprego é menos que a metade do índice geral do bloco. Um quarto das empresas afirmava em janeiro que a escassez de trabalhadores estava prejudicando sua produção, segundo a Comissão Europeia – o maior índice já registrado. Economistas temem que o envelhecimento e o encolhimento da população europeia acabarão baixando o padrão de vida no continente. Os ucranianos poderão ocasionar um estímulo demográfico inesperado.

Ucranianos que já estão na Alemanha possuem melhor qualificação do que os refugiados sírios, o que lhes facilita encontrar empregos. A relativa abundância de postos de trabalho significa que há pouco risco de os alemães acusarem os recém-chegados de roubar seus empregos. O índice de desemprego tende a se elevar apenas uns poucos décimos porcentuais antes de voltar a cair, segundo um relatório recente do Deutsche Bank. No longo prazo, ucranianos que pagam impostos poderão dar contribuição líquida ao orçamento, em vez de drená-lo.

Mas tais previsões vivazes assumem que as economias permanecerão fortes e o desemprego, baixo – suposições que poderão ser minadas por aumentos nos preços da energia ligados à guerra. Quem faz esses prognósticos também pode estar superestimando a quantidade de trabalho que mães- sozinhas, traumatizadas com sua fuga da Ucrânia e preocupadas com os maridos que ficaram para trás, serão capazes de realizar, especialmente quando creches são escassas e caras.

Se a guerra se arrastar, as economias diminuírem de ritmo e os governos fracassarem em prover aos recém-chegados habitação, serviços e empregos, os tapetes de boas-vindas poderão ser recolhidos. A discórdia já se faz presente em alguns países sobrecarregados. Na Romênia, nacionalistas extremistas sustentam que a inimiga é a Ucrânia, não a Rússia. Na Moldávia, alguns carros ucranianos foram vandalizados. Filippo Grandi, chefe da agência de refugiados da ONU, teme que a hostilidade possa se espalhar. “A solidariedade poderá se exaurir e provocar uma reação”, alertou em uma entrevista ao site de notícias Politico. Isso significaria uma vitória para Putin. E representaria outra provação para Supruniuk e outros milhões de ucranianos em fuga de uma guerra sem sentido.

https://www.estadao.com.br/internacional/the-economist-como-a-crise-de-refugiados-da-ucrania-pode-mudar-a-europa/

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