O “Made in China” ficou para trás. Se por décadas a China foi reconhecida pela mão de obra simples para produtos consumidos no Ocidente, hoje quer ser protagonista em áreas como inteligência artificial, biotecnologia, computação quântica e exploração espacial.
Com superaplicativos que agregam dezenas de serviços, um ecommerce que entrega em menos de 30 minutos e subsídio estatal para a tecnologia, a segunda maior economia do mundo ergue a bandeira do “Designed by China” (Desenvolvido pela China).
Hangzhou, capital da província costeira de Zhejiang, no leste, é uma das metrópoles que refletem a transição para a China digital.
Cidade natal de Jack Ma, fundador do Alibaba, sexta maior empresa do mundo, o município de 8 milhões de habitantes tem 30 incubadoras e 16 unicórnios —startups que valem mais de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 3,8 bilhões). O Brasil, com 208 milhões de habitantes, tem quatro.
Em 2015, o governo chinês inaugurou a Dream Town (Cidade do Sonho), uma infraestrutura de três quilômetros quadrados dedicada a empreendedores locais e estrangeiros de tecnologia.
Segundo Anran Feng, funcionária da administração, o local aloca 14,9 mil pessoas que trabalham em 1.645 startups. O governo dá espaço físico, acesso à nuvem de dados por três anos, auxílio-moradia e treinamento e dispõe de um fundo de investimento anjo de 500 milhões de yuans (R$ 277 milhões).
Dream Town é cercada por duas universidades, institutos de pesquisa e dinheiro. Além do incentivo estatal, 1.386 fundos privados depositaram 294 bilhões de yuans (R$ 136 bilhões) em três anos.
“Como diz Jack Ma, essa cidade é histórica [foi capital da dinastia Song] e também um ótimo lugar para jovens perseguirem seus sonhos, por isso o nome”, diz Feng. a
A vocação inovadora da cidade não vem só do trabalho do Alibaba de Jack Ma, o homem mais rico da China e membro do PCC (Partido Comunista Chinês). Hanghzou tem o apreço do dirigente Xi Jinping, que governou a província de Zhejiang e foi prefeito de Xangai, a 180 quilômetros dali.
“A cidade foi a primeira a permitir a privatização de estatais, o que explica parte do sucesso e do pensamento daqui”, diz o suíço Lucas Rondez, presidente do Nihub, mistura de incorporadora, aceleradora, coworking e intermediária entre empresas e investidores.
A Nihub, que incorpora 50 empresas de big data, internet das coisas e realidade virtual e aumentada, levantou o equivalente a R$ 138 milhões em menos de dois anos.
“Nessa região, os grandes talentos estão em Hangzhou e os bons administradores estão em Xangai. Se você é grande, deve ir para lá. Se é pequeno, para Hangzhou”, diz.
Programadores e desenvolvedores têm a cultura de trabalhar 12 horas por dia em seis dias da semana. Apesar da carga horária, há mais flexibilidade em relação ao passado, com espaços informais como os que pipocaram na Costa Oeste americana nos anos 2000.
Thierry Nadisic, doutor em comportamento organizacional na França que dá aulas de gerenciamento a altos executivos da China, diz que a forma de gerir dos asiáticos passa por lentas transformações.
“Os empregados são mais acostumados a obedecer do que a engajar, mas isso está mudando. À medida que a ideia não é mais copiar, chefes precisam de pessoas criativas”, diz.
No capitalismo ao estilo chinês, guiado pelo pensamento comunista, o governo dificulta a entrada de empresas interessadas apenas em mercantilização, mas abre caminho e dá suporte se a ideia servir ao bem-estar social.
John Lin, sócio da consultoria EBDS, ajuda multinacionais a ingressar no mercado. Ele diz que a missão do Partido Comunista é garantir o progresso e o desenvolvimento harmônico da sociedade chinesa.
“Xiaoping, líder da Revolução de 1978, assumiu que, se o capitalismo podia elevar a qualidade de vida do chinês, então o governo acataria”, diz.
Em outubro do ano passado, o 19º Congresso do PCC, conclave de membros que define as diretrizes dos próximos anos, determinou prioridades como o investimento em longo prazo em tecnologia e infraestrutura. O país forma 4,7 milhões de engenheiros e cientistas ao ano.
“Nos anos 1990, 50% das pessoas que conseguiam visto para os EUA não queriam sair de lá. Hoje, a maioria volta correndo”, diz Lin.
Além da intenção de ser protagonista na Ásia, a China trava uma corrida contra os Estados Unidos em inteligência artificial, área que pretende liderar até 2030.
As câmeras de segurança estão entre as principais aplicações práticas da tecnologia que não encontram equivalência em outro país. Toda a captação de imagem feita em metrópoles é disponibilizada a autoridades em tempo real.
O sistema da Dahua, principal fornecedora do governo, detecta sexo, idade e emoções, além de reconhecer identidades e rastrear placas de veículos. O preço da segurança é a privacidade.
As imagens passam por uma análise que identifica comportamentos “anormais”. “Se a pessoa sempre aparece à noite, apresenta um alto grau de perigo”, diz Elena Yu, uma das 16 mil funcionárias da Dahua.
Segundo ela, a empresa não armazena as gravações, que são “de interesse do Estado”, apenas vende os softwares. No escritório de Hangzhou, há mais de cem modelos de câmeras expostos.
A China independe de apps sociais do Ocidente, especialmente Facebook, Instagram e WhastApp. O WeChat, da Tencent, com 1,1 bilhão de usuários, agrega serviços como os prestados por Uber, Amazon, WhatsApp, Tinder e Facebook. Também substitui o cartão de crédito.
Devido à popularização do pagamento por smartphone, Lin, da consultoria EBDS, diz que o banco central diminuiu a emissão de dinheiro. Em 2017, US$ 7 trilhões foram transacionados pelo celular.
Em algumas lojas, o cliente paga com um sistema de leitura facial, que reconhece a pessoa e a relaciona com sua conta cadastrada em aplicativo.
“Da mesma forma que choca os chineses não falarem de Google e Facebook, choca o Ocidente não falar de TikTok [vídeos] e Ctrip [aplicativo de viagem que vende passagens e reservas em hotéis]. O tsunami chinês logo vai chegar ao Brasil”, diz Ricardo Geromel, sócio da StartSe, empresa de educação que faz a ponte entre startups e investidores.
A China desenvolve empresas de tecnologia para seus cidadãos. A expansão global é um passo posterior.
A ByteDance, avaliada em US$ 75 bilhões (R$ 290 bilhões) com os aplicativos Toutiao e TikTok, no entanto, destoa desse conceito. Agrega mais de 800 milhões de usuários ao redor do mundo em suas marcas.
Impedido de entrar no país, o Facebook não pode comprar nada da ByteDance. Há um mês, então, anunciou o Lasso, um app de vídeo de 15 segundos, ou uma cópia americana do chinês TikTok.