Ao abrigar 75% do agronegócio brasileiro – responsável por 24% das emissões de gases de efeito-estufa no país -, o Cerrado tem alto potencial como celeiro de tecnologias e soluções na transição para uma economia de baixo carbono aliada à conservação do bioma, no contexto da urgência climática e das projeções da demanda global por alimentos e energia, diante do aumento populacional. O cenário de riscos e oportunidades mobilizou o debate no quarto encontro virtual realizado pelo Valor em parceria com a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, com objetivo de contribuir nos preparativos do país para a CoP 26 – a conferência da ONU sobre clima que acontecerá em Glasgow, em novembro, na expectativa de novas ambições e regulações pós-Acordo de Paris.
“Precisamos investir na saúde dos solos e na vegetação nativa em pé, essenciais ao aumento da produção agrícola em 40% até 2050”, afirma Ludmila Rattis, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Segundo a bióloga, conciliar atividade agropecuária e conservação da savana tropical de maior biodiversidade do mundo exige respostas integradas, acordadas entre os vários atores e baseadas na ciência: “No Cerrado, não podemos errar, porque não sabemos como recuperá-lo e a produção dos cultivos, abrangendo 42% da soja brasileira, não pode quebrar”.
De acordo com Rattis, também pesquisadora do Woodwell Climate Research Center dos EUA, práticas não sustentáveis colocam em xeque os recursos hídricos, diante da importância do bioma como “caixa d’água”, devido às características geológicas, e influenciam as condições do clima com impacto na produção. “No Maranhão, detectamos que cada 25 hectares de vegetação nativa retirada para dar lugar a pastagem resultaram no aumento de 11% na temperatura média, influenciando o nível de umidade e a produtividade no campo”, revela a bióloga.
Ela adverte que 28% da fronteira agrícola brasileira no Cerrado já apresenta alterações climáticas em comparação a décadas atrás, com aumento da temperatura e maior déficit hídrico na estação seca. Além disso, diz, os impactos do clima associados à crescente demanda por água afetam o ciclo hidrológico: “Na região do Matopiba, englobando Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, a grande quantidade de pivôs de irrigação reduziu em 38% a vazão de rios locais”.
Em contraponto, no caminho da sustentabilidade, “a agricultura pode ser grande produtora de água, para a própria produção e para a população, ao reduzir as taxas de desmatamento, restaurar áreas degradadas de passivos ambientais e melhorar práticas em áreas convertidas legalmente”. Para ela, o bioma é chave à segurança alimentar e soberania climática, e o Brasil pode se destacar no investimento em soluções baseadas na natureza.
Entre as soluções está a Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF), que permite a captura de carbono da atmosfera e a retenção no solo, ao contrário do modelo convencional. Em 20 anos, as áreas com o modelo saltaram de menos de 2 milhões de hectares para cerca de 17 milhões de hectares, resultado de projetos de pesquisa da Embrapa e ações de transferência de tecnologia, possibilitando a intensificação do uso do solo e a diversificação da produção em uma mesma área. O sistema reduz a pressão para a abertura de novas áreas agrícolas, via desmatamento, e aumenta a oferta de serviços ecossistêmicos, como a mitigação de gases de efeito-estufa.
O Programa ABC+ (Plano Setorial para Adaptação à Mudança do Clima e Baixa Emissão de Carbono na Agropecuária) – principal mecanismo de financiamento para expansão do ILPF – deverá ser impulsionado pelo aumento de recursos de 101%, conforme o Plano Safra 2021/22. Serão destinados R$ 5 bilhões, contra R$ 251,2 bilhões disponíveis para o fomento agrícola do plano como um todo.
“Mudança climática e demanda por alimentos são questões que não podem ser discutidas separadamente”, reforça Aurélio Pavinato, diretor-presidente da SLC Agrícola. Segundo ele, o mundo precisará de mais 63 milhões de toneladas por ano de grãos até 2050 e o Brasil poderá suprir 40% desse volume, praticamente dobrando a atual produção. “Devemos nos preparar adequadamente, tendo como vantagem a maior produtividade brasileira, que em média é de 5,5 toneladas por hectare, chegando a 7 toneladas por hectare no Cerrado, enquanto no mundo o índice médio é de 3,6 toneladas”, avalia o executivo.
Entre 1985 e 2019, a área de agricultura cresceu mais que o triplo no bioma, hoje reduzido à metade da vegetação original: são 25 milhões de hectares de cultivos e 61 milhões de hectares de pastagens, segundo o MapBiomas.
Na análise de Pavinato, o potencial de expansão agrícola está em 30 milhões de hectares já desmatados pela pecuária. A evolução tecnológica tem contribuído para a intensificação produtiva, permitindo maior produtividade, sem a necessidade de derrubar mais floresta. “Temos equipamentos e recursos para evoluir em sistemas produtivos cada vez mais sustentáveis. Produção e conservação não são conflitantes”, enfatiza.
Na visão de Juliana Lopes, diretora de ESG, comunicação e compliance da Amaggi, a priorização de áreas destinadas à expansão produtiva deve ocorrer “com a integração de setores na perspectiva de paisagens sustentáveis”.
Há barreiras, como a falta de incentivos e fiscalização pelo poder público contra os riscos da ilegalidade, com atraso na implantação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), estabelecido pelo Código Florestal. “A impunidade gera desconfiança e está se tornando um problema para os compradores de produtos agrícolas, e assim perdemos uma grande oportunidade”, diz André Nassar, presidente executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove). “Com o CAR totalmente implantado, estaríamos em outro patamar de imagem no exterior.”