Biden indica manutenção de políticas de Trump contra China

Joe Biden usou grande parte dos primeiros dias de seu governo para mostrar que vai reverter uma série de medidas implementadas por Donald Trump e iniciar uma nova era nos EUA. Mas há uma frente bastante estratégica em que o democrata parece seguir os mesmos caminhos do antecessor: a relação com a China.

A persistência das tensões entre Washington e Pequim já era esperada, mas, desde que chegou à Casa Branca, Biden deu sinais que vão além. O democrata mostrou que algumas das políticas mais assertivas do governo Trump devem ser mantidas —ou até reforçadas— quando o assunto for China.

A diferença, afirmam especialistas, deve ficar na forma de execução dessas medidas, maquiada por um discurso ao menos um pouco mais suave do que aquele ecoado pelo republicano.

Com a promessa de reposicionar os EUA no centro do debate multilateral, Biden precisa equilibrar a renovação de alianças com o esforço para conter o avanço chinês, numa rivalidade histórica potencializada sob a crise econômica e uma pandemia que já matou mais de 430 mil americanos.

Diante do governo Xi Jinping, defesa e comércio são as áreas que devem receber mais atenção de Biden, com foco em restringir a expansão da tecnologia chinesa pelo mundo —cenário que pode ter reflexos diretos no Brasil, com a implementação da rede 5G.

Diretora do Instituto Internacional da Universidade de Michigan, Mary Gallagher é especialista em política chinesa e afirma que Biden deve sustentar muitas das medidas de Trump sobre a potência asiática, inclusive com apoio do Partido Republicano. “A retórica será suavizada, mas a prática permanece assertiva”, explica.

“No governo Trump, políticas sobre a China tinham má execução, não eram bem coordenadas, porque Trump não era um bom líder […] Agora as coisas serão menos dispersas, menos performáticas e mais realistas.”

Trump atacava a China de forma agressiva e recorrente também como forma de desviar a atenção de sua má condução da crise durante a pandemia —além de lançar mão de um inimigo externo para tentar reunir seus apoiadores em torno de seu discurso nacionalista e protecionista.

Na segunda-feira (25), a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, refletiu o tom do novo governo sobre Pequim.

Durante uma entrevista coletiva, a assessora de Biden usou palavras como “aliados” e “parceiros” para tratar da relação com a China, sem deixar de dizer que a conduta do país asiático “fere os trabalhadores americanos” e exige uma abordagem específica dos EUA.

“A competição estratégica com a China é uma característica definidora do século 21. A China está engajada em uma conduta que fere os trabalhadores americanos, mitiga nossa vantagem tecnológica e ameaça nossas alianças e nossa influência em organizações internacionais”, afirmou Psaki.

“O que vimos nos últimos anos é que a China está se tornando mais autoritária em termos domésticos e mais assertiva no exterior e está desafiando nossa segurança, prosperidade e valores de maneira significativa.”

Nomeado por Biden, o novo secretário de Defesa americano, Lloyd Austin, já tinha escalado vários degraus ao se referir à China durante sessão no Senado do processo que o confirmaria ao cargo, ainda antes da posse.

Austin disse que o país asiático “representa a ameaça mais significativa no futuro porque está em ascensão” e enfatizou a necessidade de os EUA darem uma resposta mais forte principalmente sobre tecnologia.

Ele disse também que a Estratégia de Defesa Nacional de 2018, assinada por Trump e que apresentava a China e a Rússia como sérias ameaças, está “absolutamente no caminho certo para os desafios de hoje”.

Responsável pela diplomacia americana, o secretário de Estado, Antony Blinken, foi menos agressivo e se ateve a dizer que a China é o relacionamento mais importante para os EUA.

Sob Trump, os americanos tentaram banir ou ao menos limitar a participação da empresa chinesa Huawei no leilão de 5G no Brasil —previsto para este ano—, sob argumento de que a companhia repassa informações sigilosas ao governo chinês, o que ameaça a segurança de dados do Brasil e a cooperação com os EUA.

Sem oferecer detalhes, Psaki sugeriu que Biden deve manter a Huawei e outras empresas chinesas sob escrutínio, como fez Trump. O democrata também não deve se opor a uma das últimas medidas do governo do republicano, que acusou formalmente a China de genocídio contra a minoria muçulmana em Xinjiang.

O governo chinês é criticado internacionalmente por manter uigures em enormes centros de detenção. Em 2018, uma equipe da ONU recebeu denúncias de que ao menos 1 milhão de uigures e de outras minorias muçulmanas estavam detidas e disse ter provas disso.

Pequim nega as acusações de abuso e diz que os locais são espaços de reeducação, voltados a combater o extremismo e a ensinar novas habilidades.

Autora de um livro sobre o autoritarismo na China, a professora Gallagher diz que a atuação de Biden deve ter o respaldo de parte expressiva da população americana, em que o sentimento anti-China tem crescido de forma bipartidária há décadas —mas que agora foi intensificado sob a crise econômica e a pandemia.

“Tem a ala protecionista democrata, o anticomunismo da ala de extrema direita entre republicanos, e os evangélicos, focados na questão do aborto e dos valores.”

Para ela, Biden não deve abandonar medidas protecionistas em termos econômicos, em um aceno aos trabalhadores do Meio-Oeste americano, região decisiva na disputa à Casa Branca.

Desde a campanha eleitoral, o democrata critica o que chama de práticas comerciais abusivas por parte da China e, na semana passada, assinou uma ordem executiva para fortalecer as diretrizes do governo que visam apoiar a indústria nacional, assim como Trump já havia feito.

A guerra comercial travada com a China por anos custou aos EUA cerca de 245 mil empregos, segundo estimativa da Oxford Economics, em relatório feito em parceria com o Conselho Empresarial EUA-China, e não trouxe os benefícios que o republicano prometeu para os americanos.

A primeira fase do acordo foi assinada por Trump em janeiro do ano passado, e ainda não está claro como Biden vai lidar com as tarifas remanescentes das negociações.

Diante da pandemia e de uma crise que deixou milhões de desempregados, o novo presidente dos EUA tem problemas internos hercúleos, mas aliados admitem que encontrar o ponto de equilíbrio na relação com a China é um dos grandes desafios na política externa, no momento em que a potência asiática tenta ocupar o posto de provedor global para o qual os EUA desejam voltar.

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/01/primeiros-dias-de-biden-indicam-manutencao-de-politicas-de-trump-contra-china.shtml

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