Berlim dá guinada e entra na guerra econômica global

Com os EUA e a China cada vez mais competindo entre si, em vez de colaborarem, a Europa não tem como continuar atada aos velhos conceitos da globalização.
A versão preliminar da nova estratégia industrial da Alemanha, apresentada pelo ministro da Economia, Peter Altmaier, trata quase inteiramente da sobrevivência nesse mundo competitivo – uma abordagem que ele quer estender ao resto da União Europeia (UE).
A competição, disse Altmaier, se dá entre três grandes blocos: EUA, Europa e Ásia. Nessa luta pelo domínio, a Europa – e a Alemanha, em particular – tem sido um observador passivo. Em parte, isso se deve, diz ele, ao apoio dado por EUA e China às grandes empresas locais, as “campeãs” nacionais.
Alemanha adota política industrial protecionista
”Praticamente não há país bem-sucedido que dependa exclusivamente, sem exceção, das forças de mercado para atingir
seus objetivos”, afirma Altmaier no estudo.
A Alemanha e a Europa, argumentou, deveriam ir na mesma direção. Caso contrário, correm o risco de perder bem mais que a competição econômica. “Se perdermos capacidades tecnológicas essenciais e, como resultado, nossa posição na economia mundial, isso teria consequências dramáticas em nosso estilo de vida, na capacidade de ação do Estado e em sua capacidade para modelar quase todas as áreas econômicas. E, em algum momento, também na legitimidade democrática das instituições.”
Surpreende ouvir isso de um ministro da premiê Angela Merkel, defensora da globalização e que, apesar da relação de seu partido conservador com as grandes empresas, sempre insistiu em deixar que os empresários alemães concorressem por conta própria. Agora, porém, ela está enfraquecida e em fim de mandato. Sua sucessora na liderança do partido, Annegret Kramp-Karrenbauer, defende uma política industrial mais ativa.
As propostas de Altmaier preparam o terreno para uma nova plataforma eleitoral, que põe em primeiro plano a “capacidade e soberania industrial e tecnológica”.
Sob essa política econômica, por exemplo, o governo teria vetado a compra da empresa de robótica (e joia industrial alemã) Kuka pela chinesa Midea, em 2017.
Altmaier disse que o governo, em casos futuros similares, será um “guardião”, fazendo uma oferta melhor e se tornando dono temporário. Afinal, o governo alemão já tem participação nos correios, na maior operadora telefônica do país e no monopólio ferroviário?
Para Altmaier, “soberania industrial” significa assegurar a sobrevivência de grandes nomes nacionais, como a Siemens, a ThyssenKrupp, montadoras automobilísticas alemãs e o Deutsche Bank.
As autoridades antitruste da Europa precisam olhar além da região ao definir a arena competitiva, disse ele, em clara referência à oposição aos planos de fusão ferroviária da Siemens e da Alstom.
O governo, segundo Altmaier, deve apoiar projetos importantes que ajudem a manter na Europa atividades de valor agregado e, com isso, empregos – como a produção de baterias e de softwares para carros elétricos e autônomos.
Além disso, o governo não deve ficar passivo quando empresas de tecnologia recebem capital de risco americanas. “Como resultado, elas vão se tornando, passo a passo, empresas americanas”, escreveu Altmaier. E que citou como exemplos a empresa especializada em análise de dados Celonis, de Munique, a ferramenta de tradução Deepl e até a líder tecnológica do país, a SAP, cuja maior parte das ações não está mais com alemães.
Ele sugeriu ainda que a Alemanha concentre “sua força política, científica e empreendedora no campo da inteligência artificial”. Foi uma alusão à ideia de uma ” Airbus da inteligência artificial”, que ele defendeu em 2018 – reproduzir o sucesso do consórcio europeu fabricante de aviões com a criação de uma “campeã” tecnológica para a “soberania de dados”.
Se tudo isso soar surpreendentemente francês, não se trata de uma falsa impressão. Altmaier encontrou no ministro das Finanças da França, Bruno Le Maire, uma figura com mentalidade parecida.
Se antes a Alemanha se mostrava um tanto indiferente aos instintos mais protecionistas da França, agora as duas maiores economias da UE parecem estar em sintonia quanto à necessidade de combater os EUA e a China. Portanto, se a estratégia de Altmaier ganhar apoio político na Alemanha – o que é provável, mas não garantido, dada a desconfiança tradicional da esquerda em relação às grandes empresas – ela também deverá ganhar força na esfera da UE.
As engrenagens políticas giram lentamente e uma guinada para uma posição de mais competição com base na soberania nacional não terá consequências imediatas.
Tal mudança, porém, tornou-se inevitável, diante do que vem sendo feito por Trump, com sua guerra comercial e política protecionista; das gigantes americanas da internet, com seu desprezo pela regulamentação europeia; e da China, com sua expansão agressiva.
Uma UE mais empenhada em apoiar a competitividade de suas empresas significará um cenário de negócios mais difícil para investidores externos – e, talvez, rivais mais fortes, se o sucesso da Airbus puder ser replicado em outros campos.
Pelo menos, desta vez, a hostilidade não começou na Europa.

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