Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, o cientista político americano Francis Fukuyama trouxe a sua visão sobre o “fim da história” e um futuro marcado pelo avanço progressivo da ordem liberal internacional, baseada em democracia, livre comércio e interação pacífica entre as nações. Acontecimentos recentes jogaram essas previsões por água abaixo. O avanço da Otan para dentro da esfera da antiga União Soviética provocou uma forte reação da Rússia, que em 2014 respondeu à queda do presidente ucraniano aliado, Viktor Yanukovych, com a ocupação e anexação da Crimeia.
No momento de maior tensão, mais de 100 mil militares russos foram mobilizados para a fronteira com a Ucrânia. Parte das tropas foi retirada nos últimos dias, mas permanece o clima de inquietação. O presidente russo, Vladimir Putin, tem exigido garantias de que a Ucrânia nunca fará parte da Otan e afirma que essa aliança força a presença militar russa nas fronteiras do país. Estimativas sobre o risco de um conflito em larga escala variam, mas poucos descartam a hipótese de uma incursão russa na Ucrânia. Ao mesmo tempo, o emblemático encontro de Putin com o presidente chinês, Xi Jinping, em fevereiro – quando assinaram um acordo pelo qual Moscou e Beijing estabelecem “relações sem limites e precedentes” – empurra essa questão regional para a esfera global.
As relações entre a Rússia e a Ucrânia vêm do século IX, na origem comum da chamada “Rússia de Kiev”, uma confederação de tribos eslavas do Leste Europeu que se estendia do mar Báltico ao mar Negro. Como parte da antiga Rússia czarista, a Ucrânia esteve entre os membros fundadores da União Soviética, em 1922. Nos anos 1930, mais de 7 milhões de ucranianos morreram de fome no chamado desastre Holodomor, provocado pelo confisco de grãos daquele país para alimentar as políticas stalinistas de industrialização forçada.
A fome vivida pelo povo ucraniano contrasta com as condições extremamente favoráveis de produção agrícola daquele país, onde predominam terras planas e escuras, conhecidas pela sua riqueza em matéria orgânica. Essas terras foram cobiçadas pela Alemanha nazista quando Hitler invadiu a União Soviética, em 1941, e depois serviram como celeiro para alimentação da população soviética.
Após a desintegração da União Soviética, o setor agropecuário ganhou importância no cenário de colapso industrial da Ucrânia. De 2000 para cá, a produção de vários cereais e oleaginosas, como trigo, milho, cevada, girassol e soja, cresceu a taxas entre 5% e 15% ao ano. Hoje o país responde por cerca de 10% a 15% do comércio mundial de trigo e milho, além de exportar outros cereais, como centeio, cevada e aveia. É o quarto maior exportador de milho, atrás apenas dos EUA, do Brasil e da Argentina. Responde por 7% do mercado de farelos e 3% do de óleos vegetais, com destaque para o óleo de girassol, produto em que representa quase metade das exportações mundiais.
No trigo, a Rússia e a Ucrânia respondem por cerca de um quarto do comércio mundial. Vale destacar também que os dois países vêm aumentando rapidamente a produção de soja e derivados, com as exportações de óleo de soja crescendo 18% ao ano desde 2010. Eles são fortes concorrentes potenciais do Brasil nos mercados mundiais de soja e milho, sob a batuta da China, que tenta reduzir a sua dependência em relação aos produtores das Américas.
É pouco provável que uma invasão provoque mudanças imediatas nas importações agroalimentares da Rússia. Em 2014, em resposta às sanções de países ocidentais, a Rússia adotou uma política de substituição de importações. Respaldada por subsídios e por uma rápida modernização da sua agricultura, atingiu a quase autossuficiência em proteínas animais, chegando a exportar alguns desses produtos, como carne bovina e suína. Na carne de aves, os dois países já responderam por 4,5% do comércio mundial.
Além das terríveis consequências humanas, a invasão da Ucrânia pela Rússia prejudicaria a produção e exportação ucraniana de commodities agropecuárias e alimentos. Bombardeios na infraestrutura terrestre, bloqueio de portos e sanções e embargos resultantes de um conflito de maior escala podem levar à perda de volumes consideráveis de commodities essenciais no mercado mundial.
O conflito pode exacerbar a já alta inflação de alimentos no Oriente Médio e no Norte da África, região que depende fortemente da importação de produtos agrícolas. Os distúrbios da Primavera Árabe ilustram as consequências da insegurança alimentar nessa parte turbulenta do mundo. A região pode sofrer com um aumento ainda maior nos preços agrícolas, hoje já elevados, já que a Rússia e a Ucrânia respondem por cerca de 50% das suas importações de trigo.
No curto prazo, portanto, de um lado vemos uma ameaça à segurança alimentar de diversos países que dependem de importações. De outro, produtores de grãos de concorrentes da Ucrânia e da Rússia, como é o caso do Brasil, podem se beneficiar do aumento de preços e participação de mercado nas cadeias de milho, trigo e soja.
Com quase 100 milhões de hectares de terras agricultáveis, e com a mudança climática já deixando novas áreas para a agricultura abertas na Sibéria, a Rússia detém um grande potencial inexplorado para cobrir parte da pujante demanda chinesa por alimentos. Ao Brasil interessa particularmente acompanhar a relação entre a Rússia e a China no agro, sendo que a primeira vai se transfigurando de cliente a concorrente.
Se a crescente cisão política e comercial da ordem mundial resultar em coalizões lideradas pelos Estados Unidos e pela China, o Brasil vai se confrontar com decisões complexas. Atualmente, a China ocupa uma posição fundamental para o agronegócio brasileiro, que não está em posição de menosprezar a relação com o gigante asiático. Mas novos concorrentes da Eurásia estão surgindo e podem conquistar partes de mercado do Brasil. O comércio administrado pelas relações políticas está voltando com força. O Brasil precisa montar estratégias sólidas para navegar nas novas constelações da geopolítica global do agro que estão se formando.
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