A China e a corrida pela IA

A covid-19 se tornou um duro teste de estresse para países em todo o mundo. Desde a gestão de cadeias de fornecimento e a capacidade dos serviços de saúde até a reforma regulatória e o estímulo econômico, a pandemia castigou sem piedade governos que não se adaptaram – ou não puderam se adaptar – rapidamente. 

O vírus também expôs uma das disputas mais importantes deste século: a rivalidade entre os Estados Unidos e a China pela supremacia na área da inteligência artificial (IA). O cenário que se revela deveria alarmar os americanos. A China não está apenas em uma trajetória para ultrapassar os EUA; ela já supera a capacidade dos EUA onde é mais importante. 

A maioria dos americanos acredita que a liderança de seu país nas tecnologias avançadas é incontestável. E muitos na comunidade de segurança nacional dos EUA insistem em que a China nunca chegará a ser mais do que um “concorrente quase igual” na área da inteligência artificial. Na verdade, a China já é uma concorrente em plenas condições de igualdade em termos de aplicativos de IA tanto comerciais como de segurança nacional. A China não está só tentando dominar a IA; ela domina a IA. 

A pandemia ofereceu um teste inicial revelador da capacidade de cada país de mobilizar a inteligência artificial em escala para responder a uma ameaça à segurança nacional. Nos EUA, o governo do presidente Donald Trump sustenta que utilizou tecnologia de ponta como parte de sua “guerra” declarada contra o coronavírus. Mas, na maioria das vezes, as tecnologias relacionadas à IA têm sido usadas principalmente como chavões de moda. 

Não é assim na China. Para impedir a propagação do vírus, a China pôs em quarentena toda a população da província de Hubei – 60 milhões de pessoas. Isso é mais do que o número de habitantes de todos os Estados da costa leste dos EUA, da Flórida até o Maine. A China manteve esse cordão sanitário massivo com o uso de algoritmos avançados de IA para rastrear os movimentos dos moradores e ampliar sua capacidade de realizar testes enquanto novos centros de saúde enormes eram construídos. 

O surgimento da covid-19 coincidiu com o Ano Novo Chinês, um período em que o deslocamento de pessoas costuma ser muito alto. Mas as principais empresas de tecnologia chinesas responderam rapidamente e criaram aplicativos com códigos de “status de saúde” para rastrear os movimentos das pessoas e determinar que indivíduos precisavam ser postos em quarentena. A inteligência artificial teve um papel crítico para ajudar as autoridades chinesas a imporem quarentenas e executarem rastreamentos de contatos abrangentes. Por causa das bases de dados de larga escala da China, as autoridades de Pequim foram bem-sucedidas onde o governo de Washington, DC, fracassou. 

Ao longo da última década, as vantagens da China em termos de tamanho, coleta de dados e determinação estratégica permitiram que ela superasse a defasagem com o setor americano de IA. A vantagem da China começa com sua população de 1,4 bilhão, que oferece um conjunto incomparável de talentos, o maior mercado doméstico do mundo e um enorme volume de dados coletados por empresas e pelo governo em um sistema político que sempre coloca a segurança à frente da privacidade. Como o principal recurso na aplicação da inteligência artificial é a quantidade de dados de alta qualidade, a China emergiu como a Arábia Saudita da commoditie mais valiosa do século XXI. 

No contexto da pandemia, a capacidade e a disposição da China de utilizar essas tecnologias de importância estratégica fortaleceram seu poderio econômico e militar. Goste-se ou não, as guerras reais do futuro serão movidas a IA. Como o então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas dos EUA, Joseph Dunford, declarou em 2018: “Quem tiver a vantagem competitiva em inteligência artificial e puder colocar em campo sistemas embasados na inteligência artificial pode muito bem ter uma vantagem competitiva global.” 

A China está destinada a vencer a corrida da inteligência artificial? Com uma população quatro vezes maior do que a dos EUA, não há dúvida de que ela terá o maior mercado doméstico para aplicativos de IA, assim como muitas vezes mais dados e cientistas da computação disponíveis. E como o governo da China fez do domínio da área de IA uma prioridade de primeira ordem, é compreensível que alguns nos EUA sintam-se pessimistas. 

Mesmo assim, acreditamos que os EUA ainda podem competir e vencer nesse campo crucial – mas só se os americanos despertarem para o desafio. O primeiro passo é reconhecer que os EUA enfrentam um concorrente sério em uma disputa que ajudará a decidir o futuro. Os EUA não podem esperar ser os maiores, mas podem ser os mais inteligentes. Na busca das tecnologias mais avançadas, pode-se dizer que é a parcela de 0,0001% dos indivíduos mais brilhantes que faz a diferença decisiva. Enquanto a China pode mobilizar 1,5 bilhão de falantes nativos de chinês, os EUA podem recrutar e influenciar talentos de todos os 7,7 bilhões de habitantes da Terra, porque é uma sociedade aberta e democrática. 

Além disso, enquanto competimos vigorosamente para manter a liderança dos EUA no setor da inteligência artificial, também devemos reconhecer a necessidade de cooperação em áreas onde nem os EUA nem a China podem garantir seus interesses nacionais vitais mínimos sem a ajuda um do outro. A covid-19 é um bom exemplo. A pandemia ameaça os interesses nacionais de todos os países, e nem os EUA nem a China podem resolvê-la sozinhos. Ao desenvolver e implementar uma 

vacina de forma abrangente, é essencial que exista um certo grau de cooperação, e vale a pena analisar se um princípio semelhante se aplica ao desenvolvimento da IA sem restrições. 

A ideia de que países podem competir e ao mesmo tempo cooperar pode parecer uma contradição. Mas no mundo empresarial isso é algo rotineiro. A Apple e a Samsung são fortes concorrentes no mercado mundial de smartphones e, no entanto, a Samsung também é a maior fornecedora de peças para o iPhone. Mesmo que a IA e outras tecnologias de ponta sugiram uma competição de soma zero entre EUA e a China, a coexistência ainda é possível. Pode ser desconfortável, mas é melhor do que a destruição conjunta. 

Eric Schmidt, ex-presidente executivo do Google e da Alphabet, preside o Conselho Consultivo de Inovação em Defesa do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. 

Graham Allison é professor de Administração Pública na John F. Kennedy School of Government da Universidade de Harvard. 

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/a-china-e-a-corrida-pela-ia.ghtml

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