Quem olhar por alto os indicadores da economia dos Estados Unidos neste 2024 considerará uma tremenda injustiça a vitória do republicano Donald Trump sobre a democrata Kamala Harris, representante de um governo que deve entregar o país com taxas muito positivas.
Nos últimos meses, os EUA evitaram o pior: um “hard landing”, ou seja, uma recessão para conter a inflação pós-pandemia. A transição para a normalidade vem se dando de forma suave e surpreendentemente boa.
Os principais índices do mercado de ações do país, como o S&P 500 e o Nasdaq —em que o grosso dos americanos que têm dinheiro investem— acumulam valorização superior a 30% em um ano.
Se a economia e o bolso geralmente predominam nas decisões de voto, por que, afinal, Trump prevaleceu num contexto positivo deixado pelos democratas?
Infelizmente para grande parte dos americanos, inflação na meta, desemprego baixo e índices de ações estratosféricos revelam apenas um lado do percurso da economia dos EUA nos últimos anos. O fato é que os 50% mais pobres estão praticamente alijados dessa aparente trajetória de sucesso.
Nesse contexto, a vitória do republicano em estados industriais considerados decadentes e vítimas da globalização, como Pensilvânia, Ohio e, provavelmente, Michigan são uma espécie de vingança de seus eleitores.
Segundo o World Income Database (WID), plataforma de dados gerida pela turma do renomado economista francês Thomas Piketty, autor do best-seller “O Capital no Século 21” (Intrínseca, 2014), a concentração de renda nos EUA seguiu firme nos últimos quatro anos, reforçando tendência de décadas.
O WID mostra que enquanto a renda do 1% mais rico —assim como a dos 10% no topo— continuou aumentando desde a primeira vitória de Trump em 2016, a metade mais pobre permaneceu estagnada.
No ano passado, enquanto os dois primeiros grupos (1% e 10% mais ricos) se apropriavam de 20,7% e 46,8% da renda, respectivamente, a metade “de baixo” ficou com apenas 13,4% do total.
No meio desses grupos, a classe média (renda anual próxima a US$ 80 mil por ano, ou R$ 460 mil) também não teve alta significativa em seus rendimentos. O segmento inclusive encolheu de cerca de 60% do total de americanos para 50% desde os anos 1980.
A principal mensagem da obra de Piketty é que, nos países desenvolvidos, a taxa de acumulação de renda nas camadas superiores tem sido maior do que os índices de crescimento econômico. Para o francês, tal tendência seria hoje a maior ameaça à democracia —um campo fértil para candidatos populistas que prometem trazer de volta um passado glorioso, como o MAGA, “Make America Great Again”, de Trump.
A vitória do republicano, que tenderá a se mostrar ainda mais radical do que em seu primeiro mandato, porém, não coloca em risco somente a mais tradicional democracia do planeta, mas o mundo com suas propostas até aqui conhecidas.
Na campanha, Trump prometeu renovar até o final de 2025 o corte de impostos concedido aos americanos em 2017, o que aumentaria em cerca de US$ 3 trilhões o déficit fiscal do país em dez anos.
Para este ano, o Congressional Budget Office, um órgão fiscal independente, projeta déficit de 7% do PIB (Produto Interno Bruto), atingindo US$ 1,9 trilhão; e a escalada do rombo já elevou a dívida pública bruta americana para US$ 33,1 trilhões, ou 123% do PIB.
Só neste 2024, os EUA estão rolando cerca de US$ 10 trilhões de sua dívida e, para atrair compradores de seus títulos, vêm pagando juros de 4,4% ao ano em papéis de dez anos —uma enormidade para os padrões do país.
Como a taxa desses títulos serve de referência para o resto do mundo, nações endividadas como o Brasil serão obrigadas a manter juros também muito elevados para atrair investidores e rolar suas próprias dívidas.
No caso brasileiro, serão inevitáveis os impactos negativos sobre o crescimento econômico e a dinâmica do já preocupante endividamento.