Grupo mais radical de resistência ao presidente dos EUA se assemelha ao criado contra Obama pelos próprios republicanos. Os exemplos são muitos. O máximo de ativismo político que Hillary Shields havia experimentado até a eleição de Donald Trump foi pedir votos para Barack Obama e Hillary Clinton. A chegada do bilionário à Casa Branca mudou esse cenário de maneira radical e a transformou em líder de um dos milhares de grupos criados nos EUA desde novembro para opor à agenda do novo presidente.
Shields agora participa de eventos e manifestações semanais em Kansas City que seguem as orientações de um guia prático de resistência a Trump elaborado por ex-funcionários do Congresso. Batizado de Indivisible (indivisível), o manual já levou à criação de 4,5 mil células em todo o país, no que está sendo visto como uma versão democrata do Tea Party, o movimento que empurrou o Partido Republicano para a direita a partir de 2009, como mostrou matéria do estadão de 19/02.
“A eleição de Trump foi terrível, mas provocou pelo menos uma coisa boa, uma nova onda de engajamento cívico nesse país”, disse Shields. Com 32 anos, ela disse que nunca viu nada parecido ao entusiasmo despertado pela resistência ao novo presidente. “Algumas pessoas já eram ativistas, mas a maioria nunca havia participado de movimentos organizados.”
A capacidade de mobilização da resistência ao republicano ficou evidente no dia seguinte à sua posse, quando mais de 3 milhões de pessoas saíram às ruas para protestar contra seu governo, na maior manifestação da história dos EUA. Quando o novo presidente proibiu a entrada no país de cidadãos de sete países de maioria muçulmana, milhares se reuniram em aeroportos americanos para se opor à medida.
O objetivo do Indivisible é canalizar esse entusiasmo para a atuação política local que leve a resultados concretos no âmbito legislativo nas próximas eleições para a Câmara e o Senado, em 2018. O guia explica como o Congresso funciona e apresenta táticas de pressão sobre parlamentares em suas bases. Segundo seus autores, o manual busca replicar o sucesso que o Tea Party teve em fazer com que congressistas escutassem um “grupo pequeno e dedicado” de eleitores de seus distritos.
Em todo o país, seguidores do Indivisible começaram a fazer protestos em frente a escritórios de parlamentares, mandar cartas, telefonar e participar de encontros que eles realizam com suas bases. No dia 9, o deputado republicano Jason Chaffetz enfrentou uma plateia enfurecida em reunião aberta com eleitores de Utah, o Estado que representa no Congresso.
Presidente do Comitê de Fiscalização da Câmara, ele foi questionado por sua falta de disposição em investigar os conflitos de interesse de Trump, ouviu críticas ao decreto que restringiu a entrada de estrangeiros no país e foi pressionado a explicar o que os republicanos pretendem colocar no lugar do Obamacare, plano de universalização do seguro-saúde que foi derrubado pelo novo governo logo no início do mandato.
“Eu tenho de ter seguro-saúde para ter certeza de que eu não morrerei”, disse Mike Carlson, que é obeso. “E você quer tirar essa cobertura e não tem nada para colocar no lugar. Como eu posso confiar que você fará qualquer coisa que seja do nosso interesse?”, perguntou Carlson, democrata que integra o movimento de resistência a Trump. Sob vaias, Chaffetz encerrou o encontro 45 minutos antes do previsto
No Estado de Nova York, o músico Joe Driscoll, de 37 anos, deu um passo além da militância e decidiu se candidatar à Câmara de Vereadores de Syracuse, para influenciar de maneira direta o processo legislativo local. Ativista há de causas progressistas e ambientais há duas décadas, ele também vê a eleição de Trump como um elemento catalisador da oposição. “Nunca vi nada como o que estou vendo agora.”
Driscoll integra a coalizão CNY Solidarity, criada depois da eleição de novembro para resistir à agenda do novo presidente, que promete dizimar o legado construído por Barack Obama ao longo de oito anos. O grupo também segue a cartilha do Indivisible e suas táticas de pressão de congressistas.
“A melhor maneira de ter impacto é estar presente quando eles estão fazendo eventos públicos. Mas muitos deles estão com medo de aparecer agora.”
Esse novo ativismo emergiu no momento em que o Partido Democrata vive um crise existencial, provocada pela derrota em uma eleição que parecia garantida. Além da presidência, os republicanos governam 33 dos 50 Estados americanos e têm maioria na Câmara e no Senado.
Peter Hakim, presidente emérito do Diálogo Interamericano, diz que os democratas estão desprovidos de uma liderança nacional que possa unir as diferentes facções da legenda e apresentar uma nova visão para seu futuro.
“O partido está em uma situação política muito difícil”, observou Hakim. Em sua opinião, existe o risco de a legenda ser empurrada radicalmente para a esquerda, o que reduziria suas chances eleitorais em um país no qual o centro costuma decidir as disputas.
A energia criada pela nova onda de ativismo é importante, mas tem de ser acompanhada do surgimento de líderes que possam transformar isso em ganhos eleitorais, avaliou.
Hakim lembrou que os anos 60 e 70 foram marcados por uma grande onda de ativismo contra a Guerra do Vietnã. Ainda assim, Richard Nixon venceu a disputa de 1968 e foi reeleito com uma das maiores margens da história em 1974, quando os democratas apresentaram um candidato que estava muito à esquerda para os padrões americanos.