Veto do consumidor desafia publicidade personalizada

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entrou em vigor no dia 18, não vai impedir que agências de publicidade e varejistas anunciem suas ofertas ao consumidor com base no que sabem sobre o potencial cliente. Mas, o setor terá bastante trabalho em se adaptar aos limites do que sabem, quanto sabem, como armazenam e transacionam as informações sobre o consumidor. 

A previsão de investimentos em campanhas digitais no Brasil é de US$ 3 bilhões este ano, com expectativa de crescimento anual de 5,6% até 2024, informa a consultoria PwC. Para não perder seu filão no setor caso o consumidor deseje não compartilhar seus dados, muitas campanhas e anúncios segmentados precisarão ser revisitados. “O fato de o consumidor ter a opção de não compartilhar seus dados pessoais demonstra uma expectativa negativa em relação ao seu tratamento para os fins de publicidade”, afirma Elise Passamani, vice presidente de cultura e operações da Lew’Lara\TBWA. 

Na sua avaliação, será necessário buscar novas formas de atrair o consumidor para esse tratamento da informação. “Inclusive já existem negócios que oferecem uma remuneração pelo uso de dados pessoais”, observa. 

Na visão de Cristiane Camargo, CEO do Internet Advertising Bureau (IAB) no Brasil, o ajuste à lei não deveria atrapalhar o setor. “No mundo ideal, onde os dados são coletados para uma boa relação de consumo, sempre considerando o ponto de vista do usuário, não deveria haver ruptura de campanhas por conta da LGPD”, afirma. 

No Brasil, o cenário da maioria das empresas não é o ideal. À exceção de grandes companhias, que já estavam investindo na adaptação, pequenos e médios varejistas e agências digitais têm muito trabalho pela frente. “O mercado como um todo ficou muito em dúvida sobre a entrada em vigor da lei até por conta da pandemia”, afirma Rodrigo Neves, atual presidente da Associação dos Agentes Digitais em São Paulo. 

Hoje a associação representa cerca de 500 empresas digitais, incluindo agências de marketing e desenvolvedores de sistemas para campanhas on-line. 

Com a pandemia, Neves conta que muitas empresas se preocuparam em salvar seus negócios e agora estão correndo atrás da adaptação à lei. “Acredito que a comunidade como um todo de comunicação não tenha se preparado de forma correta”, diz. 

O varejo on-line passa pelo mesmo cenário. O presidente da Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico (camara-e.net), Leonardo Palhares, acredita que 75% dos grandes varejistas on-line estão preparados para a lei, mas quase 100% dos pequenos e médios não podem dizer o mesmo. “As empresas têm desafios profundos de sobrevivência por causa da crise e se estruturar para a LGPD exige tempo e recursos. Além disso, há muita incerteza, dado que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados ainda não foi criada”, argumenta. 

Ricardo Lagreca, diretor jurídico e de relações governamentais do Mercado Livre, informa que a entrada em vigor da lei, ainda este ano, era esperada “e o Mercado Livre se preparou de maneira adequada”. Ele observa, no entanto, que “apesar de o Mercado Livre ter realizado um árduo trabalho em seu projeto de adequação à LGPD para atender ao prazo originalmente previsto (agosto de 2020), alguns fatores geraram a expectativa de prorrogação.” 

Lagreca comenta que as empresas tiveram que lidar com os impactos gerados pela pandemia, tanto para o setor privado quanto para o setor público, o que trouxe um desafio com relação a entrada em vigor da lei. 

Mesmo sem o direcionamento do órgão regulador para avaliar se as empresas estão abordando clientes ou tratando os dados corretamente, a lei está em vigor. As penalidades previstas serão aplicadas somente em agosto de 2021, mas o consumidor pode fazer valer seus direitos agora. 

 “Pessoas físicas, que são os titulares dos dados, já começaram a enviar cartas para as empresas perguntando se elas têm seus dados e, se tiverem, onde são armazenados, por quanto tempo e quais são as regras de segurança”, relata o advogado especialista em direito digital e presidente da Opice Blum Advogados, Renato Opice Blum, lembrando que a equipe da agência será constituída somente em 2021. 

Pela lei, as empresas têm 15 dias para responder sobre os questionamentos de seus clientes. Se a pessoa não for atendida ou identificar o uso inadequado de seus dados, pode recorrer a órgãos de defesa do consumidor. “O consumidor pode entrar com uma reclamação no Procon ou uma ação junto ao Ministério Público, por exemplo”, complementa Fábio Pereira, especialista em proteção de dados do Veirano Advogados. 

O Mercado Livre informa ter recebido seis solicitações de bloqueio de uso de dados por clientes. No entanto, há uma exigência de compartilhamento mínimo de informações para que o comprador ou vendedor possa usar as plataformas da empresa – Mercado Livre, Pago e Shops. A lista de dados inclui nome completo, endereço, dados de pagamento e CPF. 

“O uso mínimo de dados para identificação do cliente para o uso de uma plataforma ou serviço, desde que informado pela empresa, está dentro da lei. No entanto, a empresa não pode exigir informações sensíveis para o uso de uma plataforma”, explica Pereira. Uma alternativa que vem sendo sugerida pelo advogado é oferecer um cadastro de informações essenciais e um completo, que o cliente pode, ou não, preencher. 

Além do consentimento sobre o uso de dados pessoais, empresas devem se basear no “legítimo interesse” para seguir com suas campanhas. O princípio presente no Artigo 10o da lei 13.709, prevê o “tratamento de dados pessoais para finalidades legítimas, consideradas a partir de situações concretas” e de interesse do consumidor. 

“Se um vendedor de pneus para Fusca sabe que você tem este veículo ele pode oferecer uma promoção em seu benefício”, ilustra Cristiane, do IAB. A entidade reúne as principais empresas do mercado digital entre veículos, agências, anunciantes e empresas de tecnologia, incluindo redes sociais. 

Opice Blum lembra que o legítimo interesse foi inserido para justificar uma relação anterior com o cliente. Além de avaliar se uma abordagem é interessante ao consumidor, o anunciante também precisa entender as interpretações da agência reguladora já que poderá consultar a autoridade para tirar dúvidas. 

Outra questão que justifica o legítimo interesse é envolver bases legais. “Se a área de Recursos Humanos vai fazer uma checagem de antecedentes, por exemplo, não vai pedir consentimento prévio, mas usar o legítimo interesse com base em uma premissa maior que é a segurança da empresa”, afirma o advogado. 

Uma das primeiras recomendações para empresas que precisam se adequar é avaliar suas bases de dados. “A adequação vai desde a captura até o descarte. É quase que um pensamento de reciclagem”, compara Cristiane. 

Além da avaliação da base, como e-mails e telefones usados em campanhas, Neves, da Abradi recomenda que as empresas façam uma limpeza do que não é necessário para o negócio e um novo pedido de aceite das bases antigas de clientes. “Isso pode diminuir o número de aceites, mas você terá uma base que quer realmente escutar o que sua marca tem a dizer”, pondera. 

Lagreca, do Mercado Livre, explica que a adequação exigiu algumas etapas de trabalho incluindo entrevistas com diversas áreas para entender o fluxo de dados pessoais, classificação de cada atividade de tratamento de informações de acordo com as bases legais da LGPD, adequação de políticas e contratos, bem como treinamentos internos. 

A continuidade da adaptação à lei nas empresas dependerá da mudança de cultura interna sobre tratamento de dados pessoais. “De nada adianta passar pelo processo de adequação se as orientações não forem aplicadas no dia-a-dia da empresa”, reforça Elise. 

Apesar da insegurança jurídica gerada pela ausência da agência reguladora, o presidente da câmara-e.net acredita que a LGPD vai trazer mais clareza e benefícios às práticas do varejo on-line. “A lei ajuda a definir as regras do jogo. Quem é sério e já adotava medidas mais cuidadosas, agora tem um meio legal de garantir que o concorrente também ande na linha.” 

Cristiane, do IAB, acredita que a lei vai acabar com o armazenamento e a venda de dados desnecessários. “Antes você tinha uma coleta massiva de dados para talvez um dia usar, o que levou muita gente a compartilhar o que não era usado”, lembra. “Agora você precisa ter o dado exatamente para o que vai oferecer. Para vender pneus não precisa saber a cor do cabelo, escolaridade, religião, estrutura familiar, renda, que são dados sensíveis.” 

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/10/01/veto-do-consumidor-desafia-publicidade-personalizada.ghtml

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