Risco de uma recaída na depressão nos EUA é real

A economia americana está na sua primeira depressão desde os anos 30. Se houver uma segunda onda forte da epidemia de coronavírus no final do ano, como vêm alertando autoridades médicas dos EUA, isso pode causar um novo mergulho da economia, numa segunda depressão 

Se você acha que um confinamento já é sofrido, imagine passar por um segundo. É cedo demais para saber qual será o impacto duradouro do profundo congelamento, por semanas, da economia dos EUA. Mas será muito difícil para consumidores e empresas se livrarem do sentimento de aversão ao risco. O choque de um segundo período de confinamento seria bem mais grave. Dada a possibilidade de escolha, nenhum líder com instinto de autopreservação assumiria riscos diante do espectro de um novo surto da epidemia ainda neste ano. 

Ainda assim, a tentação de se conseguir uma recuperação rápida, em forma de “V”, antes das eleições de novembro nos EUA parece ser demasiado grande para o presidente Donald Trump. Discutir publicamente a perspectiva de uma segunda onda da epidemia agora é assunto proibido entre os cientistas do governo americano. 

Na quarta-feira, Trump na prática amordaçou Robert Redfield, diretor do Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC, em inglês), uma agência federal dos EUA, depois de o cientista ter alertado para o risco de uma segunda, e mais grave, onda de infecções do coronavírus no próximo inverno (no fim deste ano e início de 2021). O que Redfield quis dizer foi que todos os americanos deveriam tomar a vacina regular contra gripe, tentou esclarecer a Casa Branca. 

Muitos Estados, como Flórida, Carolina do Sul e Tennessee, já vêm relaxando as ordens de isolamento. Estúdios de tatuagem, salas de cinema e pistas de boliche aparentemente são locais seguros para se frequentar na Geórgia. Na verdade, locais como esse são ideais para os “megadisseminadores” do vírus. Na escolha entre crescimento e saúde, reabrir a economia cedo demais não trará nem um nem outro. Cientistas avisam que essa reabertura eleva as chances de uma segunda onda do coronavírus. 

Uma segunda onda, por sua vez, desencadearia outra depressão de forma instantânea. Tecnicamente os EUA ainda não estão nem em recessão, definida como dois trimestres seguidos de contração do PIB. Mas o JP Morgan prevê uma queda de 40% no PIB americano no segundo trimestre. O desemprego no país deverá bater em 20% quando a taxa de abril for divulgada, na próxima semana. Na realidade, a economia dos EUA já está em depressão. Nada nesta escala, e nesta velocidade, foi visto desde a Grande Depressão, no início dos anos 30. Foi preciso a Segunda Guerra Mundial para os EUA saírem dela. Será necessária uma vacina ou alguma terapia milagrosa para impedir a primeira depressão dos EUA em quase um século. 

O país a ser observado é a China. Suas regras estão sendo definidas tanto por cidadãos quanto pelo governo. Os restaurantes na China estão com poucos clientes. Poucas pessoas estão viajando de avião. E muitas pessoas saem de casa apenas para o essencial. Os chineses, em outras palavras, vêm se atendo a um confinamento semiformal. A julgar pelos números das pesquisas nos EUA, a maioria dos americanos está em clima parecido. Trump pode acreditar que é capaz de 

apertar um botão e voltar a ligar a economia dos EUA. Na prática, ele não pode obrigar os consumidores a engolirem os seus medos. Quanto mais o presidente fala sobre o coronavírus – uma média de cerca de 90 minutos por dia – menos os americanos acreditam no que ele está lhes dizendo. 

A tarefa da China, possivelmente, é mais fácil que a dos EUA. Sua economia é muito menos dependente dos gastos dos consumidores que a dos EUA. Na teoria, a China pode ter todas suas operações industriais funcionando em junho. Na prática, porém, é improvável que elas tenham muitas encomendas. Como o mundo ruma para a sua primeira contração desde a Segunda Guerra, é improvável que isso mude. Qualquer pequeno crescimento que a China consiga virá em grande medida de estímulos do governo. 

O ideal seria que EUA e China trabalhassem juntos para conter o vírus. Dada a hostilidade mútua, é quase impossível imaginar isso. Mesmo que os EUA reabram sua economia sem desencadear outra epidemia, grande parte do resto do mundo continuará em confinamento. Partes do mundo, como a África Subsaariana e a América Latina, deparam-se com suas piores crises econômicas em décadas. Seria irreal supor que o turismo e as viagens a negócios voltarão aos níveis pré- pandemia. Alguns países vão impor quarentenas de 14 dias a todos os visitantes, o que na prática acabaria com cerca de 90% das viagens. Outros países serão arriscados demais para visitar. 

É possível que o mundo consiga criar uma vacina em tempo recorde. A história, enquanto isso, provavelmente estará do lado de Redfield. A maioria das epidemias tem várias ondas. A segunda onda da gripe espanhola, no inverno de 1918, foi muito pior do que a primeira, na primavera anterior. Por enquanto, o melhor que os EUA podem esperar é uma modesta recuperação lenta, em forma de “U”, com suaves retomadas e paradas. Dada a alternativa – o espectro de outra depressão instantânea – é imprudente ter como objetivo uma recuperação em “V”. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/04/24/risco-de-uma-recaida-na-depressao-nos-eua-e-real.ghtml

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