O Reino Unido e a União Europeia anunciaram um acordo para redefinir as relações pós-brexit. O pacto, anunciado em Londres pelo primeiro-ministro Keir Starmer e pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, remove algumas barreiras comerciais instituídas após a saída dos britânicos do bloco, e inclui colaboração na área de defesa.
A reaproximação ocorre em meio a um cenário geopolítico turbulento em que os dois lados buscam reduzir sua dependência dos Estados Unidos sob Donald Trump, nove anos após os britânicos decidirem sair da UE por meio de um plebiscito.
“É hora de olhar para frente,” disse Starmer. “Deixar para trás os velhos debates e disputas políticas estéreis, e focar em soluções práticas e de bom senso que tragam o melhor para o povo britânico.”
Essa mensagem foi ecoada por von der Leyen, chefe do órgão executivo do bloco, que afirmou: “Estamos agora virando a página e abrindo um novo capítulo.”
Foi a primeira vez que líderes do Reino Unido e da UE tiveram uma reunião desde 2020, quando a saída do bloco foi concluída. O encontro incluiu o presidente do Conselho Europeu, António Costa, e durou cerca de duas horas.
O primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, que apoiou a permanência na UE na época do plebiscito, aposta que garantir um acesso mais tranquilo à Europa para visitantes e comerciantes abafará os gritos de “traição” de apoiadores do brexit.
No entanto, o acordo traz riscos políticos para Starmer, pois aborda questões sensíveis, incluindo os direitos de pesca e imigração, e muitos dos compromissos exigirão negociações adicionais.
O governo britânico disse que a redefinição com seu maior parceiro comercial reduzirá a burocracia para produtores de alimentos e agrícolas, tornando os alimentos mais baratos, melhorará a segurança energética e adicionará quase £9 bilhões (R$ 70 bilhões) à economia até 2040.
Este é o terceiro acordo que o Reino Unido fecha neste mês, após os pactos com a Índia e os EUA, e está inserido na nova ordem global imposta por Trump, que forçou governos ao redor do mundo a repensarem laços comerciais, de defesa e de segurança, aproximando Starmer do presidente francês Emmanuel Macron e de outros líderes europeus.
Uma concessão na área da pesca por parte do Reino Unido abriu caminho para o acordo. Embarcações britânicas e da UE terão acesso recíproco às águas por 12 anos, em troca de uma redução permanente na burocracia e nas verificações fronteiriças que têm impedido muitos pequenos produtores alimentares de exportar para a Europa.
Jonathan Reynolds, secretário de Negócios do Reino Unido, disse que o setor pesqueiro se beneficiará do novo acordo, argumentando que isso ajudará a vender peixe e frutos do mar para a UE. “Não se trata apenas do que você pesca, mas de para quem você vai vender”, disse ele.
Grupos pesqueiros no Reino Unido temem que o acordo de 12 anos sobre se torne permanente, e políticos conservadores da oposição e a imprensa crítica à UE já estão alegando que o setor foi traído.
Economistas da Universidade de Aston estimam que as exportações agrárias do Reino Unido para a UE podem aumentar em mais de 20% como resultado do acordo.
As exportações de alimentos e bebidas do Reino Unido para a UE foram de £14 bilhões (R$ 106 bilhões) em 2024, segundo a Federação de Alimentos e Bebidas, grupo de lobby da indústria. A indústria pesqueira do Reino Unido representa apenas cerca de 0,03% da produção nacional britânica.
Outro ponto central é uma parceria de segurança e defesa, abrindo caminho para uma cooperação mais estreita entre Reino Unido e UE em rearmamento e treinamento militar.
Ambos os lados estiveram envolvidos em intensas negociações durante a noite de domingo (18) sobre os detalhes do acordo, incluindo pesca e comércio de alimentos, além da redação de um esquema proposto de mobilidade de jovens.
Apesar das expectativas britânicas, o acordo de segunda-feira não incluiu disposições para permitir que cidadãos britânicos cruzem a fronteira para a UE de forma mais rápida, utilizando os portões eletrônicos de passaporte.
O bloco vinculou tal acordo, assim como novas regras para facilitar turnês de músicos britânicos, ao progresso na mobilidade de jovens, que permitiria que cidadãos dos estados-membros estudassem e trabalhassem no Reino Unido e vice-versa.
Um dos pontos de maior tensão é um programa de mobilidade para jovens. Ambos os lados concordaram que trabalharão para alcançar um acordo sobre a melhoria da mobilidade, prevendo meses de negociações —Starmer está sob forte pressão doméstica sobre migração.
Embaixadores dos 27 estados membros se reuniram na manhã de segunda-feira para aprovar o pacote, enquanto os líderes das instituições da UE foram a Londres para formalizá-lo.
O Reino Unido reconheceu que a remoção de barreiras ao comércio de alimentos exigirá que o país “alinhe-se dinamicamente” às regulamentações da UE à medida que mudam —e também faça pagamentos ao bloco para financiar trabalhos sobre padrões alimentares e animais.
NOVE ANOS DE CRISE
O voto do Reino Unido para deixar a UE em um referendo histórico em 2016 revelou um país profundamente dividido sobre questões como migração, soberania e comércio.
Isso desencadeou um dos períodos mais tumultuados da história política britânica, com cinco primeiros-ministros no cargo antes da chegada de Starmer, em julho passado, e deteriorou as relações com Bruxelas.
Pesquisas mostram que a maioria dos britânicos agora lamenta o resultado do referendo, embora não deseje voltar à UE.
Em vez de buscar um retorno completo a um pilar do bloco, como o mercado único, Starmer procurou negociar melhor acesso ao mercado em algumas áreas —uma abordagem que muitas vezes é rejeitada pela UE como “escolha seletiva” de benefícios do bloco sem as obrigações da adesão.
A remoção da burocracia no comércio de alimentos exigirá que o Reino Unido aceite a supervisão da UE sobre os padrões de produção, mas Starmer provavelmente argumentará que vale a pena para ajudar a reduzir o custo dos alimentos.
Veja os principais pontos do acordo:
PACTO DE DEFESA E SEGURANÇA
O governo trabalhista do Reino Unido e a União Europeia estão prestes a firmar um pacto de defesa e segurança que os governos conservadores anteriores optaram por não buscar quando o brexit foi inicialmente negociado.
Ambos os lados concordam que é essencial que os países europeus trabalhem de forma mais próxima em defesa, dada a invasão da Ucrânia pela Rússia e os apelos do presidente dos EUA, Donald Trump, para que os membros europeus da Otan assumam uma maior parte do fardo da aliança.
Como parte desse recomeço, o Reino Unido firmará uma nova parceria de segurança e defesa, que, segundo o governo britânico, “abrirá caminho” para que empresas britânicas tenham acesso a um programa de 150 bilhões de euros (US$ 167 bilhões) para rearmar a Europa.
O Reino Unido também considerará participar de missões civis e militares de gestão de crises da UE e poderá participar de compras conjuntas com o bloco, de acordo com um documento preliminar de entendimento visto pela Reuters.
SANITÁRIO E FITOSSANITÁRIO
Um acordo veterinário com a UE, com o objetivo de evitar inspeções desnecessárias nas fronteiras, é central para o plano de reaproximação com a UE do Partido Trabalhista.
O Reino Unido afirmou ter chegado a um acordo com a UE para evitar inspeções fronteiriças desnecessárias em produtos agrícolas, como carnes e laticínios, dentro de um acordo sobre padrões alimentares.
O chamado acordo Sanitário e Fitossanitário (SPS) não terá prazo determinado, proporcionando mais segurança para as empresas britânicas.
O acordo manteria altos padrões alimentares, os quais o Reino Unido também insistiu que não foram reduzidos durante suas negociações com os EUA para a remoção de tarifas.
MOBILIDADE
Um programa de mobilidade juvenil para facilitar que jovens com menos de 30 anos viajem e trabalhem entre o Reino Unido e a UE é uma prioridade para o bloco.
O governo de Keir Starmer afirmou que isso não será um retorno à livre circulação, mas sim a entrada controlada de um número limitado de pessoas, com provável restrição quanto ao número de participantes e ao tempo de permanência. O grupo de campanha Best for Britain afirmou que dois terços dos britânicos apoiam um esquema com limite de dois anos.
O documento preliminar de entendimento mostra que os dois lados trabalharão para um acordo de mobilidade juvenil, enquanto o Reino Unido declarou que qualquer programa será limitado em número e tempo.
PESCAS
O Reino Unido e a UE ampliarão o acesso recíproco total às águas para pesca até 30 de junho de 2038, estendendo por 12 anos as disposições que expirariam em 2026.
O Reino Unido afirmou que o acordo não resultará em aumento da quantidade de peixes que embarcações da UE podem capturar em águas britânicas.
O Reino Unido também investirá 360 milhões de libras em sua indústria pesqueira, para novas tecnologias e equipamentos que modernizem a frota.
O acordo comercial pós-brexit transferiu cotas existentes para o bloco durante um período de transição, após o qual elas passariam a ser negociadas anualmente ou em ciclos plurianuais.
A pesca tem sido historicamente uma fonte de tensão. A UE levou o Reino Unido aos tribunais por sua proibição da pesca de lançons em águas britânicas.
ELETRICIDADE
O Reino Unido saiu do mercado interno de energia da UE após o Brexit, mas a indústria energética britânica está pressionando por arranjos de comércio de eletricidade mais eficientes e próximos com o bloco.
Agora, as duas partes explorarão a participação do Reino Unido no mercado interno de eletricidade da UE.
O Reino Unido importou cerca de 14% de sua eletricidade em 2024, um recorde, por meio de conexões com Bélgica, Dinamarca, França e Noruega.
MERCADOS DE CARBONO
Muitas empresas britânicas e da UE têm solicitado a ligação entre os mercados de carbono dos dois lados. Já existe colaboração na cobrança de usinas e outras indústrias por suas emissões de carbono para atingir metas climáticas.
Agora, o Reino Unido e a UE trabalharão para estabelecer um vínculo entre seus sistemas de comércio de emissões —o que, segundo o Reino Unido, melhoraria a segurança energética e ajudaria as empresas a evitarem o imposto europeu sobre carbono que entrará em vigor no próximo ano.
Analistas do setor afirmaram que vincular os dois mercados de carbono provavelmente elevaria os preços do Reino Unido, que atualmente são mais baixos do que os da UE, para níveis semelhantes aos europeus.
OUTRAS ÁREAS
O reconhecimento mútuo de certas qualificações profissionais, mudanças para facilitar o deslocamento de artistas em turnê e o compartilhamento de dados são áreas nas quais o Reino Unido e a UE podem buscar futuros acordos.