Reduzir domínio do Google não será tarefa fácil

O bem-amarrado pacote de serviços montado pelo Google em torno do Android, seu sistema para smartphones, sustentou um dos negócios mais lucrativos do mundo da tecnologia.
Ao multar a empresa em € 4,3 bilhões, ontem, a União Europeia (UE) enviou uma mensagem clara: a de que quer desmembrar a estratégia móvel do Google. Após mais de dez anos, porém, o Android fez com que a empresa fincasse profundas raízes na internet móvel, e relaxar seu domínio sobre ela não será fácil.
“Há um enorme efeito de rede”, disse Kevin Walkush, gerente de carteira da Jensen Investment Management, que detém ações da Alphabet, a holding do Google. “As pessoas estão acostumadas a usar, e gostam de usar, os produtos e serviços do Google.” Corroborando a opinião generalizada em Wall Street, Walkush prosseguiu: “Tenho dificuldades em ver isso fazer muita diferença”.
Críticos do Google argumentam, no entanto, que há muito mais em jogo. Na opinião deles, os reguladores da Europa deram os primeiros passos para reduzir a capacidade de o Google usar simultaneamente o Android como canal para aspirar automaticamente dados dos usuários de smartphones e ponto de distribuição garantido para seus anúncios móveis. As medidas da UE poderão, além disso, enfraquecer a capacidade de negociação do Google no mundo móvel, dando a outras empresas uma chance de manter uma fatia maior das riquezas que são hoje canalizadas principalmente para a companhia de internet.
Bruxelas teve como alvo um conjunto de exigências contratuais e de pagamentos de incentivos que compõem o âmago da estratégia móvel do Google. Eles exigem que um pacote completo dos serviços da empresa seja pré-instalado em todos os aparelhos equipados com o Android, usam o atrativo representado pelos pagamentos para barrar a instalação de ferramentas de busca concorrentes e suprimem versões alternativas do Android que operam fora do alcance do Google.
O ataque regulatório representa um eco claro da contestação da UE ao “empacotamento” usado no passado pela Microsoft para defender o sistema operacional Windows. Sundar Pichai, o executivo-chefe do Google, escreveu um texto de aprovação na época sobre a necessidade de proibir a “amarração” de serviços que a empresa de software usava para defender sua posição monopolística, que abriu espaço para o navegador concorrente do Google.
Ele agora argumenta, diferentemente, que o Google manteve uma plataforma de software mais aberta, e que os aplicativos móveis – que contêm novos serviços disponíveis para baixar com um clique – estão muito distantes do mundo confinado do PC.
O domínio do Google sobre o Android nas áreas de busca móvel, navegadores e lojas de aplicativos – que estão no centro do processo da UE – passou a parecer inabalável. A Opera, uma fabricante independente de navegadores, diz que apenas cerca de 20% dos usuários móveis baixam um navegador distinto do vendido com os telefones, embora os dados sobre tráfego de internet móvel sugiram um uso consideravelmente menor.
“Qualquer medida da UE lembra a tentativa de prevenir um mal já causado”, disse Geoff Blaber, analista da empresa de pesquisa CCS Insight. Além disso, após o Google ter se firmado como ferramenta de busca dominante nos dispositivos Android, que respondem por 80% dos smartphones vendidos no mundo, a Apple teve pouca alternativa senão incluí-lo nos iPhones também, disse Scott Cleland, um crítico de longa data do Google.
Alguns concorrentes argumentam que cindir o ecossistema do Android vai ainda mais fundo. Os usuários de smartphones passam boa parte de seu tempo em aplicativos, e a decisão da UE poderá decompor os serviços do Google que lhe permitem extrair desse ecossistema de aplicativos receita de anúncios e dados, disse Ken Glueck, vice-presidente-sênior da Oracle, que se tornou a inimiga mais implacável do Google no Vale do Silício. Isso inclui exigências de que os usuários dos aplicativos recorram aos serviços próprios de locação do Google, e incorporem seus sistemas de anúncios e pagamentos embutidos nos aplicativos.
Em vista da enorme vantagem competitiva do Google Play, a loja de aplicativos da empresa, pode ser difícil imaginar qualquer outra companhia competindo com uma loja concorrente de apps para Android, disse Glueck. Ele, porém, ressalvou: “É claro que pode haver um terceiro ou quarto sistema de pagamento alternativo, ou servidor de anúncios”.
Forçar uma mudança nas cláusulas contratuais do Android e pôr fim à distribuição garantida dos serviços do Google pode, além disso, mudar a correlação de forças do mundo da internet móvel. O Google já paga uma parcela de sua receita a operadoras móveis, a fabricantes de aparelhos e a outros setores que ajudam a distribuir seus anúncios.
Uma acentuada elevação desses custos – que deram um salto de mais de 50% no ano passado, para US$ 9 bilhões – já começa a preocupar Wall Street. Se os fabricantes de aparelhos celulares passarem a ter mais poder de barganha, isso poderá aumentar esses custos e comprometer as margens de lucro do Google. A empresa gerou estimados US$ 50 bilhões de receita com seus anúncios móveis no ano passado.
Pichai insinuou que o Google poderá ter de mudar o modelo de negócios em torno do Android para neutralizar os efeitos da medida. A empresa dá suporte ao software em vários aparelhos distintos “com milhares de engenheiros, e prestamos [esse serviço] mundialmente”, disse ele em entrevista ao “Financial Times”. “Precisamos simplesmente encontrar uma maneira sustentável de fazer isso funcionar.”
O resultado mais provável, segundo Bill Batchelor, advogado do escritório Baker McKenzie, de Bruxelas, e crítico da decisão da União Europeia, é que será preciso começar a cobrar ou pensar em menos pesquisa e desenvolvimento.
A complexidade do ecossistema meio aberto, meio fechado erigido em torno do Android dificulta prever exatamente como quaisquer mudanças vão se efetivar, advertiu Blaber.
Ao cobrar pelo Android, na verdade, o Google pode contabilizar lucros mais elevados com os smartphones que os registrados atualmente. A empresa detém 80% do setor de smartphones e não tem verdadeiros concorrentes, disse Walkush, o que deixa aos fabricantes de aparelhos pouca alternativa senão pagar.
E, acrescentou Walkush, se a maioria dos celulares ainda for vendida com serviços do Google – como sua ferramenta de busca e loja de aplicativos – a empresa ainda ficará com muitas das vantagens obtidas atualmente com a plataforma.

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