Pressionada pela disputa com a China, Índia se aproxima dos EUA

Até agora o governo indiano tentou evitar escolher um lado no antagonismo acelerado entre Washington e Pequim. Mas uma separação entre a Índia e a China parece agora inevitável depois dos choques entre os exércitos dos dois países na semana passada 

A ruptura entre a China e a União Soviética foi um momento decisivo na Guerra Fria. Uma ruptura agora entre a China e a Índia poderia ter a mesma importância na Segunda Guerra Fria que parece estar se desenrolando entre os EUA e a China. 

Até agora o governo indiano, liderado pelo primeiro-ministro Narendra Modi, tentou evitar escolher um lado no antagonismo acelerado entre Washington e Pequim. Mas uma separação entre a Índia e a China parece cada vez mais inevitável depois dos choques de fronteira entre os Exércitos dos dois países, na semana passada, que deixaram pelo menos 20 soldados indianos mortos e um número desconhecido de baixas no lado chinês. 

Modi encontrou-se com o presidente chinês, Xi Jinping, várias vezes desde que assumiu o governo da Índia em 2014 e esteve na China cinco vezes. Recentemente, em outubro, os dois líderes realizaram uma cúpula amigável, após o qual Modi saudou “uma nova era de cooperação entre nossos países”. 

Mas agora o clima em Nova Déli é bem diferente. Independentemente do que aconteceu no Himalaia, os indianos se sentiram agredidos e humilhados pela China. 

Na sexta-feira, Modi realizou reuniões de emergência com líderes da oposição indiana – algo por si só notável, dado o grau extremo de polarização da política indiana. 

Há agora um quase consenso na elite política indiana de que a China é um potência hostil e que a única resposta viável da Índia é se aproximar mais dos EUA, das democracias asiáticas, como o Japão, e da Austrália. 

Apesar dos esforços de Modi para estreitar as relações com Xi, a ansiedade indiana com a ascensão da China vem aumentando há anos. Os indianos vêm assistindo com nervosismo a China estabelecer uma relação especial com o Paquistão – um país com o qual a Índia já esteve em guerra várias vezes. A expansão da influência chinesa em países vizinhos como Sri Lanka, Mianmar, Bangladesh e Nepal, também não agrada nem um pouco em Nova Déli. 

A Índia demonstrou sua insatisfação recusando-se a enviar uma delegação de alto nível para os fóruns realizados na China em 2017 e 2019 sobre a Iniciativa do Cinturão e da Rota. 

Mas, embora os “falcões” contra a China em Nova Déli estejam ganhando influência, ainda há uma escola menos radical que há muito anos afirma não ser interesse da Índia se envolver num esforço americano para “conter” a China. Em parte, isso reflete o legado da história. Durante a Guerra Fria original, a Índia adotou uma política de não alinhamento e, na verdade, esteve sempre mais perto de Moscou do que de Washington. Por ser um país com quase 1,4 bilhão de habitantes, a Índia compreensivelmente está determinada a forjar o seu próprio caminho e a manter uma autonomia estratégica. 

Há também argumentos econômicos sólidos para o país tentar manter uma boa relação com a China, que é o seu segundo maior parceiro comercial. 

Mas qualquer pensamento de tentar manter uma equidistância entre EUA e China provavelmente foi abandonado pela Índia. Há até mesmo sinais de que a Índia poderá considerar uma aliança formal com os EUA. Um intelectual indiano, próximo do governo Modi observou enfaticamente na semana passada que um dos motivos de a China ter se sentido livre para matar soldados indianos – mas não japoneses ou taiwaneses – é que Japão e Taiwan estão sob um guarda-chuva de proteção dos EUA. 

A hostilidade de Donald Trump com o sistema de alianças americano torna altamente improvável que o presidente dos EUA venha a considerar a extensão de uma garantia de proteção para a Índia, pelo menos não sem um considerável estímulo financeiro. Mas um governo liderado por Joe Biden, seu adversário democrata nas eleições presidenciais de novembro, poderá muito bem comprar a ideia de uma aliança formal. 

Nos últimos anos os EUA se tornara mais ostensivos em seus esforços para cortejar a Índia, como uma força de equilíbrio a uma China em ascensão. Em 2018, o Exército americano reformulou seu comando no Pacífico e seu comando Indo-Pacífico, e os laços militares cada vez mais próximos da Índia com os EUA refletiram-se em compras de armas, visitas a portos e manobras militares conjuntas. Uma intensificação dessa cooperação, em coordenação com Japão e Austrália, parece inevitável. 

Os indianos não querem novos confrontos diretos com a China no Himalaia. Ontem, os dois países concordaram em reduzir a tensão militar na fronteira Mas a Índia poderá tentar desafiar Pequim em outras frentes, trabalhando com aliados no Oceano Índico e no Mar do Sul da China. A Índia também deverá fazer acelerar planos para reduzir sua dependência econômica da China. As chances de a gigante chinesa de telecomunicações Huawei conseguir contratos para a construção de uma rede 5G na Índia parecem agora mínimas. 

Mas será que a China se importa? A postura confrontadora de Pequim sugere que os chineses não levaram em conta os perigos de qualquer retaliação indiana. A China sabe que sua economia é quase cinco vezes maior que a da Índia e que suas Forças Armadas têm mais poder de fogo. Os chineses podem até mesmo ter julgado que o momento é bom para colocar a Índia em seu devido lugar, justo quando o país vem sendo abalado pelo coronavírus e os EUA se encontram distraídos. 

Depois dos choques na fronteira na semana passada, o “Global Times”, jornal nacionalista de Pequim, escreveu em editorial que a Índia deveria aprender com o incidente e que não pode depender de Washington para apoio e socorro. 

No curto prazo isso pode estar certo. No longo prazo, a China deveria se preocupar. As quatro maiores economias do mundo, pelo poder de compra, são a China, os EUA, o Japão e a Índia. Todas as quatro estão muito preocupadas com o equilíbrio de poder na região Indo-Pacífico. Seria loucura a China empurrar a Índia para os braços dos EUA. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/06/24/pressionada-pela-disputa-com-a-china-india-se-aproxima-mais-dos-eua.ghtml

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