Presidente Xi quer reescrever o contrato social chinês

A enxurrada recente de novas regulações e políticas na China parece ser motivada pelo que Pequim chama de “mudanças nunca vistas em um século”. Isso é o código para a ascensão da China e o declínio relativo do poder do Ocidente liderado pelos EUA. A instabilidade que essa mudança na ordem mundial pode desencadear levou Pequim a se fortalecer preventivamente, tratando de vulnerabilidades internas e externas. 

Em certos momentos, a retórica soa como uma rajada do passado revolucionário da China. Nesta semana, por exemplo, o presidente Xi Jinping defendeu a “luta” num discurso publicado no “Diário do Povo”. “Não é realista esperar uma vida pacífica sem luta”, disse. “Devemos defender a soberania, a segurança e os interesses de desenvolvimento da China com uma determinação sem precedentes.” 

A ideia parece ser promover vários objetivos ao mesmo tempo, alguns dos quais se sobrepõem e outros não. Ao defender a “prosperidade comum”, Pequim sinaliza com uma campanha contra a desigualdade social. Ao enfatizar a “dupla circulação”, busca reduzir a dependência dos mercados externos. Ao promover valores familiares, espera, em parte, que as mulheres optem por ter mais filhos. Ao reprimir as aulas de reforço fora do horário escolar e os videogames, quer atenuar o stress financeiro e emocional das famílias. 

Algumas das medidas merecem aplausos. Proibir a polêmica política “996” de horas extras, pela qual muitos empregados do setor de tecnologia trabalham das 9h da manhã até as 9h da noite, seis dias por semana, indica que Pequim pode realmente ter a intenção de melhorar a vida do vasto grupo de trabalhadores de baixa renda do país. Limitar aulas de reforço fora do horário escolar pode reduzir o stress crônico de milhões de crianças causado pela privação de sono. 

A resposta a algumas das iniciativas de Pequim tem sido impressionante até agora. Na quinta-feira, o Alibaba, gigante chinesa de tecnologia, comprometeu-se a investir US$ 15,5 bilhões em desenvolvimento econômico e social até 2025 em apoio à agenda de “prosperidade comum” de Pequim. O valor equivale ao da promessa semelhante de sua rival Tencent. 

Mas há também riscos. Exortações à “luta”, combinadas com o estilo de campanha de algumas políticas, podem bloquear o debate racional e instigar autoridades a demonstrações vazias de lealdade, o que prejudicaria a tomada de decisões ao longo do tempo. 

Alguns anúncios já parecem simplistas. A regra que limita o tempo que crianças podem jogar videogames a três horas por semana pode ser difícil de aplicar. A credibilidade do governo desaparece se há desobediência em massa. 

Um risco maior é que as muitas críticas contra o vibrante setor de tecnologia acabem por alimentar um preconceito contra empresas privadas. Quase todas as empresas de TI (como Alibaba, Tencent, Meituan, Didi e outras) que foram alvo do escrutínio regulatório nas últimas semanas são privadas. 

Uma abordagem movida em tom de campanha pode facilmente extravasar para o radicalismo. A redistribuição da riqueza, por exemplo, seria alcançada de maneira melhor na China por uma legislação que modificasse o código tributário. A cobrança de impostos sobre vendas de imóveis, herança e outras expressões de riqueza seria vista como transparente e equitativa. Esse é um caminho que Pequim ainda pode decidir seguir. 

Xi parece determinado a redesenhar o contrato social da China. O velho mantra de que alguns “ficarão ricos primeiro” está dando lugar a um credo mais equitativo. Em última análise, isso pode beneficiar cerca de 600 milhões de chineses que vivem com renda mensal de cerca de US$ 154 ou menos. Mas, se essas boas intenções descarrilarem por causa do radicalismo, a China se verá diante de um futuro mais sombrio. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/09/03/presidente-xi-quer-reescrever-o-contrato-social-chines.ghtml

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