O TikTok é o aplicativo de relacionamento social on-line do momento entre adolescentes nos EUA, o lugar onde publicam seus mais novos vídeos de dança, as enterradas de basquete ou põem em prática seu ativismo político, como no caso daqueles que em junho tentaram atrapalhar o comício do presidente americano Donald Trump em Tulsa.
Agora, também se tornou a parte central da história de descasamento entre EUA e China, que começou com fabricantes de chips e equipamentos, como ZTE e Huawei, e agora gira em torno à ByteDance, dona chinesa do TikTok, hoje sendo obrigada a vender o aplicativo a uma empresa de tecnologia americana, a Microsoft.
Tudo isso respalda a ideia de que o comércio exterior na área de tecnologia e os padrões de investimento provavelmente mudarão no futuro. Até agora, essa história era em grande medida mais retórica do que real. Apesar das manchetes sobre as guerras de comércio exterior, apenas cerca de 7% das rotas de comércio internacional foram alteradas entre 2014 e 2017, segundo análise feita pelo McKinsey Global Institute (MGI) em cima de números da Base de Dados Estatísticos de Comércio Internacional (Comtrade, no acrônimo em inglês) da Organização das Nações Unidas (ONU). As mudanças, no entanto, deverão se acelerar drasticamente, de acordo com um novo relatório do MGI.
Em razão de múltiplos riscos – desde pandemias, mudanças climáticas e rachas políticos ao crescente número de cibertaques e de crises financeiras – os choques no comércio internacional vêm ficando mais frequentes. As empresas agora sofrem 30 dias de interrupções em suas cadeias de fornecimento a cada 3,7 anos. Isso significa que, ao longo de dez anos, as empresas podem perder o equivalente a 40% do lucro de um ano, de acordo com o relatório.
O MGI também estima que até 26% das exportações mundiais de mercadorias, um valor de cerca de US$ 4,6 trilhões, poderiam mudar-se a novos países nos próximos cinco anos. E essa é uma estimativa conservadora, baseada no que é viável economicamente neste momento. A política pode, é claro, forçar mudanças que não estão no melhor interesse de um país, mas que refletem o desejo do eleitorado ou de autocratas.
Parte dessa história diz respeito a um pêndulo que nas últimas décadas avançou demasiadamente para o lado da concentração das cadeias de fornecimento, tanto geográfica quanto economicamente. A hiperconcentração na Ásia das cadeias de fornecimento de baixo valor produziu empresas que eram eficientes, mas não necessariamente resistentes, em particular quando impactadas por desastres naturais ou eventos políticos inesperados.
A covid-19, por exemplo, expôs as fragilidades decorrentes do fato de que China e Índia produzem a grande maioria dos insumos farmacêuticos do mundo. Na verdade, o relatório do MGI encontrou 180 casos de produtos comercializáveis essenciais nos quais mais de 70% das exportações vêm de um só país. A concentração é maior na área de equipamentos de comunicação e telefonia móvel, uma das frentes politicamente mais delicadas no momento. Também é comum em setores de perfil menos polêmico, como o de roupas e outros produtos têxteis.
Isso coloca em evidência outro desdobramento: agora estamos vivendo em um mundo no qual duas superpotências, com sistemas econômicos e políticos muito diferentes, são tanto grandes produtores quanto grandes consumidores. O crescimento dos salários na China aumentou o poder de compra dos consumidores chineses, mas também aumentou as chances de que a produção de mercadorias de baixo valor, como móveis ou roupas, seja transferida a outros países.
Ao mesmo tempo, a ascensão da China e a forma como ela protege áreas de importância estratégica, incluindo o setor de tecnologia, têm contribuído para os atritos inerentes quando se tem “um mundo e dois sistemas”. Esse problema foi exacerbado pelas políticas unilaterais de comércio exterior de Trump.
Nos últimos 20 anos, a China se tornou um país muito mais rico. Não tem apenas uma enorme base industrial, mas também consumidores mais ricos, que cada vez mais compram marcas locais – como telefones da Xiaomi em vez da Apple. Quando os EUA dificultam que fabricantes chineses façam negócios nos EUA, eles se mudam para outros países.
Uma firma chinesa de tecnologia de serviços financeiros – que atende mais de 600 mil fornecedores na China, em sua maioria pequenos e médios – com quem falei recentemente diz que houve uma clara mudança nos negócios. Nos últimos dois anos, a firma passou a ter menos clientes nos EUA e mais na Europa, que agora é cerca da metade do fluxo da plataforma. É possível imaginar que dois ecossistemas de consumidores e produtores inteiramente separados poderiam emergir, um centrado nos EUA e outro na China – mesmo se o caminho para chegar a isso for doloroso e repleto de buracos.
Mas o comércio exterior, de qualquer forma, já está ficando um caminho mais esburacado. “À medida que um mundo multipolar toma forma, estamos vendo mais disputas comerciais, tarifas [de importação] mais altas e maior incerteza geopolítica”, destaca o relatório do MGI. “A proporção do comércio global realizada por países ranqueados na metade de baixo da estabilidade política no mundo, de acordo com a classificação do Banco Mundial, subiu de 16% em 2000 para 29% em 2018. Tão revelador quanto isso é o fato de que quase 80% do comércio envolve nações cujas notas de estabilidade política estão em queda”.
As placas tectônicas do comércio internacional estão se movendo em direções que remodelarão a economia e a política. Nos EUA, parlamentares dos dois partidos dominantes estão mais uma vez apoiando uma política de fortalecimento industrial, algo que nem se mencionava há décadas, e defendendo intervenções públicas em mercados privados em áreas estratégicas, como a de semicondutores. Na China, as cadeias de fornecimento que outrora fabricavam roupas e montavam aparelhos a preços bem baratos para que fossem vendidos a consumidores ricos no Ocidente, agora, estão cada vez mais voltadas aos mercados domésticos.
Nesse sentido, talvez a maior mudança de todas no comércio exterior seja a forma como as duas superpotências estão trocando de lugar.
Rana Foroohar é editora especial do Financial Times em Nova York
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-grande-desmanche-do-comercio-exterior.ghtml