O fim das cadeias globais de valor

Virou lugar comum o argumento de que participar de cadeias globais de valor é condição para melhorar a inserção de países na economia mundial. Afinal de contas, diz o argumento, redes globais de produção expõem as empresas a melhores práticas, disciplinas de trabalho, padrões regulatórios, tecnologias, ideias, parcerias e clientes, o que aumentaria a produtividade e a competitividade.

Evidências empíricas corroboram o argumento. Impressoras 3D, robôs, inteligência artificial, manufatura avançada estão reescrevendo as condições de produção.

No entanto, é provável que esta visão venha a ser parcialmente contestada e melhor qualificada nos próximos anos. E motivos para isto não faltam, como mostrou artigo de Jorge Arbache, publicado no Valor de 1/06.

Primeiro, as novas tecnologias de produção e de organização da produção estão colocando o modelo de produção fragmentada em xeque. Impressoras 3D, robôs, inteligência artificial, manufatura avançada, novas energias e outras tecnologias estão reescrevendo as condições de produção e viabilizando a produção local/regional de muito daquilo que hoje é produzido por parceiros espalhados em vários continentes. Essas tecnologias permitem produzir em condições competitivas desde bens sofisticados até bens simples, como um calçado esportivo. Velocidade de acesso a mercado e condições para se fazer negócios estão suplantando fatores como custos de produção e incentivos fiscais enquanto fontes de competitividade.

Segundo, a crescente sofisticação e customização dos produtos está desafiando a produção fragmentada. Um caso revelador é o do Boeing 787, produzido a partir de uma extensa rede global de fornecedores. Embora no papel o projeto levasse a menores custos e a maior agilidade, o projeto foi um fiasco e gerou multas bilionárias por atrasos de entrega. Estamos aprendendo que parece haver uma relação inversa entre viabilidade da fragmentação da produção e nível de complexidade e de customização do produto, o que se deve, sobretudo, aos elevados custos de coordenação.

Terceiro, as mudanças nos padrões de consumo estão favorecendo os serviços e os produtos superintensivos em serviços. De fato, a participação dos serviços na cesta de consumo das pessoas e na matriz de custos das empresas só faz crescer. São serviços de toda natureza. Mas a parcela que mais cresce é a de serviços “embutidos” nos produtos tangíveis, como P&D, design, softwares, marcas e outras manifestações que agregam valor, conectam bens à internet e criam novas funcionalidades. Quando calculados por valor adicionado, os serviços já representam 54% do comércio global, mas estima-se que serão 75% até 2025.

Quarto, a ascensão da economia digital está criando oportunidades para novos modelos de negócios. Enquanto o comércio global de bens e fluxos financeiros parece ter atingido o pico em termos de parcela do PIB, os fluxos de dados estão crescendo quase que exponencialmente. Segundo McKinsey (2016), apenas entre 2005 e 2014 o fluxo global de dados cresceu 45 vezes. Expansão da infraestrutura de conectividade, efeito-rede, custos cadentes de computação e de sensores, arquiteturas abertas de softwares e desregulação dos mercados digitais estão acelerando o ritmo de adoção e de uso de tecnologias digitais e viabilizando a emergência de toda uma nova geração de investimentos e de modelos de negócios.

Quinto, acordos plurilaterais de comércio, investimentos e propriedade intelectual redefinirão os parâmetros de viabilidade e localização dos investimentos. Acordos como o TPP e o TISA mudarão substancialmente as regras do jogo – desregulação e acesso a mercados, regras de não discriminação, convergência regulatória, abertura dos mercados de serviços e de dados estão entre as principais mudanças. Tudo isto alterará as condições de produção e de competitividade entre países reduzindo a relevância de fatores convencionais associados à geografia e à custos.

Sexto, a necessidade de preservação do meio ambiente será parte da geografia dos investimentos. No futuro próximo, o custo da pegada de carbono passará a ser elemento determinante de competitividade, alterando os incentivos de localização da produção e a lógica da produção fragmentada.

Esses fatores já estão levando grandes empresas globais a reavaliarem os méritos de se envolverem em longas e complexas redes intercontinentais de produção, enquanto outros fatores estão ganhando relevância nas suas decisões. Reconhecendo aquelas mudanças, já se observam tendências de as companhias abraçarem os benefícios da era digital e focarem cada vez mais em investimentos intangíveis e em produção local/regional.

Países “late comers” como o Brasil, que ainda buscam intensificar as suas participações nas cadeias globais de valor, terão que reconsiderar as suas estratégias e encarar o duplo desafio de seguir adiante com aqueles objetivos ao tempo em que se adaptam às oportunidades emergentes da era digital e pós-cadeias globais de valor.

Para tanto, terão que desenvolver políticas que criem condições atrativas para a economia digital e para os serviços de alto valor agregado e para sediar investimentos com foco local/regional.

Como estamos tratando de tendências novas, teremos que ter um engajamento proativo e flexível para aprender a navegar nessas águas. Será preciso, para isto, coordenar políticas desde a partida, experimentar, monitorar, avaliar, ser pragmático e colaborativo. Por fim, como várias experiências de desenvolvimento econômico mostram, tal estratégia será, provavelmente, mais bem-sucedida se Estado, empresas e trabalhadores conciliarem interesses e cooperarem no seu desenho e implementação.

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