A ideia disparou uma revolta em escala total nas instalações do Google. Seis anos atrás, a gigante do Vale do Silício assinou um pequeno contrato, de US$ 9 milhões, para empregar as habilidade de alguns de seus desenvolvedores mais inovadores na tarefa de construir uma ferramenta de inteligência artificial capaz de ajudar militares a detectar possíveis alvos no campo de batalha usando imagens de drones.
Engenheiros e outros funcionários do Google argumentaram que a empresa não deveria se envolver de nenhuma maneira com o Projeto Maven, mesmo que ele fosse destinado a ajudar militares a distinguir entre civis e militantes.
O alvoroço forçou a empresa a recuar, mas o Projeto Maven não morreu — apenas foi transferido para outros prestadores. Agora, a iniciativa cresceu e se transformou em um experimento ambicioso em teste nas linhas de frente na Ucrânia, formando um componente crítico do esforço militar dos Estados Unidos para produzir e direcionar informações oportunamente para os soldados que combatem os invasores russos.
Até aqui os resultados são ambíguos: generais e comandantes têm uma nova maneira de colocar uma imagem total de todos os movimentos e comunicações da Rússia em uma tela grande — e fácil de operar — empregando algoritmos para prever posições para as quais tropas estão se movimentando e onde ataques poderão acontecer.
Mas a experiência americana na Ucrânia sublinhou como é difícil levar dados dos século 21 a trincheiras do século 19. Mesmo com o Congresso prestes a prover dezenas de bilhões de dólares em ajuda para Kiev, a maioria na forma de munições e sistemas de artilharia de longo alcance, permanece a dúvida sobre as novas tecnologias serem ou não suficientes para ajudar a mudar a maré da guerra em um momento em que os russos parecem ter recuperado o ímpeto.
‘Isso virou nosso laboratório’
A guerra na Ucrânia tem ajudado, nas mentes de muitas autoridades americanas, as Forças Armadas dos EUA a prosperar, por constituir um campo de testes para o Projeto Maven e outras tecnologias em rápida evolução. Os drones de fabricação americana enviados à Ucrânia no ano passado foram derrubados facilmente. E autoridades do Pentágono agora entendem, de uma maneira inédita, que o sistema americano de satélites militares tem de ser construído e armado de uma maneira inteiramente diferente, com configurações mais parecidas com as constelações de pequenos satélites da Starlink, de Elon Musk.
Enquanto isso, oficiais militares americanos, britânicos e ucranianos, juntamente com algumas das principais empresas de equipamentos e serviços militares do Vale do Silício, estão explorando novas maneiras de descobrir e explorar vulnerabilidades da Rússia, à medida que autoridades americanas tentam transitar por restrições legais sobre quão profundamente podem se envolver na localização e morte de soldados russos.
“No fim das contas isso virou nosso laboratório”, afirmou o tenente-general Christopher Donahue, comandante da 18.ª Divisão Aerotransportada, que ficou conhecido como “o último homem no Afeganistão” porque coordenou a retirada americana no aeroporto de Cabul em agosto de 2021, antes de retomar seu trabalho de infundir novas tecnologias nas Forças Armadas.
E apesar das preocupações iniciais no Google sobre participar do Projeto Maven, algumas das figuras mais proeminentes da indústria estão empenhadas em problemas de segurança nacional, sublinhando como os EUA estão se aproveitando de sua vantagem competitiva em tecnologia para manter sua superioridade sobre a Rússia e a China em uma era de rivalidades renovadas entre superpotências.
De forma reveladora, essas figuras incluem agora Eric Schmidt, que trabalhou 16 anos como diretor-executivo do Google e agora usa lições aprendidas na Ucrânia para desenvolver uma nova geração de drones autônomos capazes de revolucionar a arte da guerra.
Mas além de ser um campo de testes para o impulso do Pentágono de adotar tecnologias avançadas, o ataque brutal da Rússia contra a Ucrânia é também um lembrete a respeito dos limites da tecnologia para transformar a guerra.
A capacidade da Ucrânia de repelir uma invasão, pode-se argumentar, depende mais de envios constantes de armas e munições básicas, especialmente cápsulas de artilharia.
Os dois primeiros anos do conflito também mostraram que a Rússia está se adaptando, muito mais rapidamente do que antecipado, à tecnologia que deu à Ucrânia uma vantagem inicial.
No primeiro ano da guerra, a Rússia quase não usou suas capacidades de guerra eletrônica. Hoje, Moscou faz pleno uso dessas tecnologias, confundindo os enxames de drones que os EUA ajudam a fornecer. Mesmo os temidos mísseis HIMARS, que o presidente Joe Biden relutou tanto para enviar a Kiev e deveriam ter feito uma enorme diferença no campo de batalha, tiveram as trajetórias alteradas em certas ocasiões, conforme os russos aprenderam como interferir em seus sistemas de orientação.
Não surpreende que todas essas descobertas estão compondo uma série de estudos sobre “lições aprendidas” conduzidos no Pentágono e no quartel-general da Otan em Bruxelas, em preparação para a possibilidade das tropas da aliança atlântica entrarem em combate direto com as forças do presidente Vladimir Putin. Entre as lições está a descoberta de que quando as novas tecnologias enfrentam a brutalidade da guerra de trincheiras tradicional os resultados raramente correspondem às expectativas dos estrategistas do Pentágono.
“Por um tempo nós pensamos que este conflito fosse ser uma guerra cibernética”, afirmou no verão (Hemisfério Norte) o general Mark Milley, que deixou a posição de comandante do Estado-Maior Conjunto dos EUA no ano passado. “Depois nós achamos que o conflito se pareceu mais com uma guerra de tanques tradicional, em estilo 2.ª Guerra.” Então, disse Milley, houve dias em que os combates se pareceram com a 1.ª Guerra.
Mais de 1,6 mil quilômetros a oeste da Ucrânia, nas profundezas de uma base americana no coração da Europa, há um centro de processamento de informações de inteligência que se tornou o ponto focal do esforço de unir os aliados e as novas tecnologias para combater as forças russas.
Visitantes não são bem-vindos no “Fosso”, como o local é conhecido. Autoridades americanas raramente falam sobre sua existência, em parte por preocupações de segurança, mas principalmente porque a operação levanta dúvidas sobre quão profundamente os EUA se envolvem no trabalho cotidiano de localizar e matar soldados russos.
A tecnologia em uso no Fosso evoluiu do Projeto Maven. Mas uma versão fornecida à Ucrânia foi projetada para não precisar ser alimentada pelas informações de inteligência mais sensíveis produzidas pelos EUA ou sistemas avançados.
As metas mudaram muito desde a comoção no Google, seis anos atrás. “Naqueles dias iniciais, a coisa era bem simples”, afirmou o tenente-general Jack Shanahan, que foi o primeiro diretor do Centro Conjunto de Inteligência Artificial do Pentágono. “Era totalmente básico. Identificar veículos, pessoas, edifícios e então tentar abrir caminho para algo mais sofisticado.”
A saída do Google, afirmou ele, pode ter diminuído o passo no sentido do que o Pentágono veio a classificar como “guerra algorítmica”. Mas “nós simplesmente seguimos em frente”.
No momento em que a guerra na Ucrânia começou a se anunciar, elementos do Projeto Maven eram projetados e construídos por quase cinco dúzias de empresas, da Virgínia à Califórnia.
Mas houve uma empresa comercial que se provou mais bem-sucedida em colocar tudo isso no que o Pentágono chama de “uma vidraça única”: a Palantir, uma empresa cofundada em 2003 pelo bilionário conservador-libertário Peter Thiel e por Alex Karp, seu diretor-executivo.
O foco da Palantir é organizar e visualizar massas de dados. Mas a empresa com frequência figurou no centro de um debate em torno do momento em que construir uma imagem do campo de batalha poderá contribuir para decisões de matar excessivamente automatizadas.
Versões iniciais do Projeto Maven, com base na tecnologia da Palantir, foram acionadas pelo governo dos EUA durante a pandemia de covid-19 e a operação de retirada de Cabul para coordenar recursos e controlar a prontidão. “Nós tínhamos essa torrente de dados, mas humanos não eram capazes de processar tudo”, afirmou o general Shanahan.
O Projeto Maven tornou-se rapidamente o maior sucesso entre os muitos esforços do Pentágono nos primeiros passos na guerra algorítmica e logo incorporou dados de quase duas dúzias de outros programas do Departamento de Defesa e fontes comerciais a uma imagem operacional comum sem precedentes para os militares americanos.
Mas o Projeto Maven nunca tinha estado na guerra.
Um encontro na fronteira polonesa
Nas primeiras horas do dia seguinte ao início da invasão russa, uma alta autoridade militar dos EUA e um dos mais graduados generais da Ucrânia encontraram-se na fronteira polonesa para conversar sobre uma nova tecnologia que poderia ajudar os ucranianos a repelir os russos.
O americano tinha um tablet em seu carro operando o Projeto Maven por meio de um software da Palantir e conectado a um terminal Starlink.
A tela do tablet mostrava muitas das mesmas informações de inteligência que os operadores no Fosso viam naquele momento, incluindo a movimentação das unidades de blindados da Rússia e as comunicações entre as forças russas conforme elas se atrapalhavam a caminho de Kiev.
Conforme os dois homens conversaram, ficou evidente que os americanos sabiam mais a respeito da localização das tropas da Ucrânia do que o próprio general ucraniano. O ucraniano estava bastante certo de que suas forças tinham tomado uma cidade dos russos, mas as informações de inteligência dos americanos sugeriam o contrário. Quando a autoridade dos EUA sugeriu ao militar da Ucrânia que telefonasse para um de seus comandantes em campo, o general ucraniano soube que o americano estava correto.
O ucraniano ficou impressionado — e furioso. Forças americanas deveriam estar lutando lado a lado com os ucranianos, afirmou ele.
“Nós não podemos fazer isso”, respondeu o americano, explicando que Biden tinha proibido. O que os EUA podem fornecer, afirmou ele, é uma imagem em evolução do campo de batalha.
Atualmente uma tensão similar continua a irromper dentro do Fosso, onde uma coreografia cuidadosa se apresenta a cada dia. Os militares levam a sério a ordem de Biden para que os EUA não ataquem diretamente os russos. O presidente disse que não deve ser permitido à Rússia vencer, mas que os EUA também têm de “evitar a 3.ª Guerra Mundial”.
Portanto, os americanos apontam os ucranianos para a direção correta, mas não chegam a lhes fornecer dados precisos de localização de alvos.
Os ucranianos melhoraram rapidamente suas capacidades e construíram uma versão do Projeto Maven usando empresas de satélites como Maxar e Planet Labs e dados obtidos no Twitter e em canais do Telegram.
Fotos publicadas no Instagram, tiradas por russos ou ucranianos nas proximidades, mostraram com frequência posições de trincheiras ou lançadores de foguetes camuflados, assim como dados de geolocalização de soldados russos que não têm a disciplina de desligar seus celulares.
Esse fluxo de informação tem ajudado a Ucrânia a atacar a artilharia russa. Mas a esperança inicial de que a imagem do campo de batalha fluiria para os soldados nas trincheiras, conectados por telefones ou tablets, nunca se concretizou, afirmam comandantes em campo.
Um sistema crítico foi o Starlink, a rede de satélites fornecida por Elon Musk, que com frequência foi a única conexão dos soldados com quartéis e entre si. Isso reforçou uma realidade que já se tornava bastante óbvia: a rede de 4,7 mil satélites da Starlink provou-se quase tão eficiente quanto os sistemas bilionários dos americanos, às vezes até melhor, afirmou uma autoridade da Casa Branca.
Sonhos de frotas de drones
Por um tempo pareceu que a vantagem tecnológica poderia permitir à Ucrânia expulsar inteiramente os russos do país.
Em um subúrbio de Kiev, estudantes ucranianos de ensino médio passaram o verão de 2023 trabalhando em uma fábrica esquecida havia muito, soldando componentes fabricados na China para montar pequenos drones, que então eram acoplados a armações de fibra de carbono. Os equipamentos eram leves e baratos, custando cerca de US$ 350 a unidade.
Os soldados nas linhas de frente acoplavam então a cada drone explosivos de 1 ou 2 quilos projetados para imobilizar veículos blindados ou matar operadores de brigadas de artilharia russas. Os drones foram projetados para missões kamikaze não tripuladas — um único uso, como barbeadores descartáveis.
A fábrica anteriormente abandonada nas proximidades de Kiev resumiu todas as complicações e contradições da guerra na Ucrânia. Desde o início, os ucranianos entenderam que, para vencer, ou até para seguir na luta, eles tinham de reinventar a guerra de drones. Mas mal conseguiram manter um fluxo suficiente de componentes para sustentar o esforço.
“A Ucrânia”, disse ele em outubro, entre viagens para o país, “tornou-se o laboratório mundial de drones”. Ele descreveu o súbito aparecimento de várias startups de drones na Ucrânia, de “todo tipo concebível”.
Mas no outono de 2023, Schmidt começou a se preocupar com a possibilidade de apenas a vantagem tecnológica da Ucrânia não ser suficiente. A população russa é grande demais e disposta demais a sacrificar-se, os preços do petróleo continuaram altos e a China seguiu disposta a fornecer aos russos tecnologias e componentes — ao mesmo tempo que também vendeu para os ucranianos.
E à medida que as novas fábricas ucranianas produzissem drones cada vez mais baratos, ele temia que os equipamentos seriam rapidamente superados.
Então Schmidt começou a patrocinar uma visão diferente, que agora, após a experiência ucraniana, tem ganhado adeptos no Pentágono: drones autônomos e muito mais baratos, que poderiam ser lançados em enxames e comunicar-se entre si caso perdessem conexão com operadores humanos. A ideia é uma geração de armas novas que aprenderiam a evitar as defesas antiaéreas russas e se reconfigurariam se alguns drones do enxame fossem derrubados.
Não é claro se os EUA, acostumados a fabricar requintados drones de US$ 10 milhões, são capazes de mudar para os modelos descartáveis. Nem se estão prontos para suscitar as questões sobre estabelecimento de alvos que acompanham frotas dotadas de inteligência artificial.
“Há muitíssimas questões morais aqui”, reconheceu Schmidt, notando que esses sistemas criariam outra rodada de longos debates sobre estabelecimento de alvos com base em inteligência artificial, mesmo enquanto o Pentágono insiste que manterá “níveis apropriados de juízo humano sobre o uso da força”.
Schmidt também chegou a uma conclusão dura: essa nova versão da guerra será provavelmente medonha. “Soldados em campo, com drones circulando sobre suas cabeças, sabem que estão constantemente sob os olhares atentos de pilotos invisíveis, a quilômetros de distância”, escreveu Schmidt no ano passado. “E esses pilotos sabem que estão possivelmente sob a mira de inimigos que os observam de volta. (…) Essa sensação de exposição e voyeurismo letal está por todo lado na Ucrânia.”