Mundo vive, de uma só vez, choques de crise anteriores

Por causa da invasão da Ucrânia, a Rússia está sendo desconectada do sistema mundial, um cabo econômico e financeiro após o outro.

Isso devastará sua economia, que já foi a 11ª do mundo e ainda é do G20. Junto a um sistema financeiro paralisado, isso levará a uma depressão que vai comprometer o bem-estar de gerações de russos.

O que acontece econômica e financeiramente na Rússia e na Ucrânia não vai ficar só lá. Além da trágica migração forçada de milhões de ucranianos, há consequências para a economia e os mercados mundiais, tanto de imediato como no longo prazo.

Quando suas repercussões tiverem se espalhado por todo o mundo, estaremos diante de alguns dos desafios econômicos e financeiros mais duros dos anos 1970, 1980 e 1990. Mas com uma diferença importante: todos eles terão se materializado ao mesmo tempo.

A vulnerabilidade da Rússia às sanções do Ocidente é visível no colapso de sua moeda, nas filas nos bancos, na escassez de mercadorias, na multiplicação de restrições financeiras etc. A forte contração resultante no PIB levará anos para ser revertida e exigirá uma transformação custosa de como a economia opera internamente e interage com outras externamente.

As principais implicações para o resto do mundo, embora desiguais entre os vários países e mesmo dentro deles, são uma combinação de desafios que já vimos antes. 

Com as quebras na disponibilidade de commodities da Ucrânia e da Rússia, e novas panes nas cadeias de fornecimento, o mundo enfrenta uma grande inflação nos custos que lembra o choque do petróleo da década de 1970. 

Também similar aos anos 70, o Fed, o banco central americano, o mais poderoso do mundo, já lida com danos à sua credibilidade no combate à inflação. Com isso vem a probabilidade de expectativas inflacionárias desancoradas, a falta de boas opções de política monetária e uma escolha difícil para o Fed, entre aceitar a inflação acima da meta até bem adiante em 2023 ou empurrar a economia dos EUA para a recessão. 

Como nos anos 1980, o acúmulo de pagamentos em atraso será uma característica dos mercados emergentes. Isso começará com a Rússia e a Ucrânia, embora por razões diferentes. 

A Rússia ficará cada vez mais relutante e incapacitada para pagar credores de bônus, bancos e fornecedores ocidentais. Em nítido contraste, a Ucrânia atrairá assistência financeira internacional considerável, mas ela será cada vez mais condicionada a que o setor privado compartilhe parte da carga do financiamento, ao aceitar uma redução nas obrigações contratuais com o setor público do país. 

É provável que essa combinação de inadimplência e reestruturação se espalhe para outras economias emergentes, como alguns importadores de commodities especialmente frágeis na África, Ásia e América Latina. Eles já sentem os efeitos dos preços de importação maiores, do dólar mais forte e da alta dos custos de empréstimos. 

Como nos anos 1990, quando um aumento nas taxas de retorno do mercado pegou muitos de surpresa, também devemos esperar mais volatilidade do mercado financeiro. 

Os investidores começam lentamente a reconhecer que a estratégia de investimento de “comprar na baixa” foi abalada. Essa abordagem mostrou-se muito lucrativa quando apoiada por injeções maciças e previsíveis de liquidez por parte dos bancos centrais. Mas hoje ela enfrenta dificuldades, e os responsáveis pela política monetária dos EUA não têm boas alternativas de política. E isso acontece no momento em que o preço de muitos ativos está consideravelmente desacoplado dos fundamentos, por conta dos muitos anos de intervenções do banco central. 

Ao contrário da década de 1990, porém, os investidores não devem esperar uma normalização rápida do relacionamento da Rússia com os mercados de capitais internacionais e, com isso, uma recuperação de seus bônus de dívida. Desta vez será mais confuso e demorado. 

Tudo isso tem três implicações principais para a economia mundial. A estagflação deixou de ser um cenário de risco para se tornar o cenário de base. Hoje o cenário de risco é a recessão. E haverá uma divergência significativa nos resultados individuais de base, que vão variar de uma depressão na Rússia a uma recessão na zona do euro e à estagflação nos EUA. 

A diferenciação também será visível no desempenho do mercado, mas ocorrerá após um período de contágio para alguns, à medida que as condições financeiras globais fiquem mais duras. O principal cenário de risco para os mercados também mudou, com risco de volatilidade preocupante e mau funcionamento dos mercados. 

É um risco que, ao contrário dos anos 2008-2009, tem menor relevância para os bancos e, portanto, para o sistema de pagamentos e liquidação. Essa é a boa notícia. Mas sua transformação e migração para o setor não-bancário ainda significam riscos de consequências negativas para a economia real. 

Mohamed El-Erian é presidente do Queens’ College, de Cambridge, e consultor da Allianz e da Gramercy 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2022/03/16/mundo-vive-de-uma-so-vez-choques-de-crise-anteriores.ghtml

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