Mudança tática sugere dificuldade da Rússia no leste da Ucrânia

A evolução da batalha do Donbass, a região do leste da Ucrânia que pode definir o rumo da guerra iniciada por Vladimir Putin, sugere a dificuldade russa para sustentar a ofensiva com os soldados de que dispõe.

Desde o final da semana passada, há sinais de que Moscou retirou seus homens do entorno de Kharkiv, a segunda maior cidade do país, a noroeste das duas principais regiões do Donbass, Donetsk e Lugansk.

A Defesa da Ucrânia divulgou imagens celebrando o que seria a chegada de suas forças à fronteira da região de Kharkiv com a Rússia —isso indicaria o fim do risco de um cerco.

Os ataques ali prosseguiram no fim de semana e nesta segunda, mas com mísseis de aviões em espaço aéreo russo. Ao mesmo tempo, há relatos de concentração de forças em torno de Severodonetsk, que, apesar do nome, fica em Lugansk. Na semana passada, a Rússia já havia tomado áreas táticas por ali.

De acordo com a análise de entidades ocidentais como o americano Instituto de Estudos da Guerra e de observadores russos em seus canais no aplicativo Telegram, o grosso dos combates deverá ocorrer por lá. Se isso for confirmado, a ideia russa de cercar todas as forças ucranianas em Donetsk e Lugansk parece ter sido abandonada por falta de forças, mais um fracasso militar para Putin.

Ao atacar Severodonetsk, o objetivo mais factível de tomar toda Lugansk fica evidente. Daí talvez o próximo passo sejam as áreas ucranianas de Donetsk, mostrando que não há energia russa para executar de forma mais rápida a vontade declarada de tomar todo o Donbass.

Essa meta foi anunciada pelos russos após o que chamou de primeira fase da operação militar, no mês passado. Na realidade, Moscou fracassou em tomar Kiev ao orquestrar uma invasão com muitas frentes e poucas forças, subestimando a resistência ucraniana e o apoio militar que ela recebe do Ocidente.

A segunda fase, no Donbass, de todo modo está de acordo com o que Putin anunciou em 24 de fevereiro: proteger as autoproclamadas repúblicas do leste da Ucrânia. Elas reclamam para si os territórios históricos das províncias de Donetsk e Lugansk desde que entraram em guerra civil com Kiev, em 2014.

“A operação no Donbass fracassou”, escreveu no Telegram Igor Girkin, que foi um dos principais comandantes militares da guerra civil e hoje vive em Moscou. Colocando um grão de sal na avaliação, já que ele foi tirado pelo Kremlin das ações na Ucrânia, trata-se de uma voz que conhece a realidade local.

Girkin emula o que dizem outros analistas russos: só uma mobilização maior e mais brutalidade poderão trazer algum tipo de vitória a Putin. Até aqui, o russo se negou, buscando dar um caráter limitado à guerra.

Potências ocidentais afirmavam que a Rússia havia concentrado talvez 200 mil homens para a ação, 150 mil dos quais nas linhas de frente. Hoje, analistas veem a cifra de 80 mil soldados como mais provável.

O Reino Unido diz que um terço dos batalhões táticos da invasão foi tirado de combate, ou seja, a Rússia teria perdido ao menos 50% de sua força —numa conta de padaria, aceitando a relação oficial entre mortos e feridos do Kremlin, que é inconfiável, são de 3.000 a 10 mil caídos.

Analistas como Michael Kofman, do centro CNA, supõem que uma mobilização não resolva o problema mais imediato, por trazer conscritos e reservistas com pouco treino. Um mês após seu início, a batalha do Donbass por ora só trouxe ganhos táticos, a maior parte dos quais para a Rússia, mas ainda não mudou a realidade estratégica. Putin parece contar que a guerra de atrito facilitará um avanço maior, dando condições para encerrar as hostilidades numa posição de força —tendo tomado mais território do que tinha antes.

Isso estaria consolidado com o controle do sul ucraniano, cada vez mais desenhado como anexação pura e simples do corredor entre a região russa de Rostov e a Crimeia, tomada em 2014. A dúvida é se Putin manteria tais ganhos se não houver paz e se uma guerra de intensidade menor se estabelecer na região.

Outro ponto é o alcance do russo. Baseado num escorregão verbal aparente de um general, é consenso no Ocidente que o plano do Kremlin inclui tomar o resto da costa do mar Negro e unir seu controle à região separatista russa da Transdnístria, na vizinha Moldova. Mas ninguém de fato sabe o que Putin quer.

Essa incerteza, somada à opacidade acerca do que ocorre nos campos de batalha, joga dúvida em qualquer assertiva sobre a guerra. De lado a lado: as falas de Volodimir Zelenski sobre as dificuldades no leste podem ser retrato da realidade ou só um apelo do líder ucraniano por mais armas e dinheiro.

O cenário, contudo, parece insinuar um prolongamento da guerra. Aí, o estabelecimento de linhas mais ou menos claras pode até facilitar a ideia de um cessar-fogo, embora Kiev se recuse a discutir isso.

Nesta segunda-feira, o ministro das Relações Exteriores Dmitro Kuleba disse em entrevista à TV Bloomberg que “procurar opções para Putin livrar sua cara é simplesmente uma abordagem falsa”.

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/05/mudanca-tatica-sugere-dificuldade-da-russia-no-leste-da-ucrania.shtml

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