A inocência daquele verão é algo tocante de lembrar hoje. Em um passado muito distante chamado 2024, quando o Reino Unido elegeu um governo trabalhista, otimistas defendiam a hipótese de que o cenário do país era animador. O presidente da França, Emmanuel Macron, enfrentava problemas orçamentários e a Alemanha tinha uma recessão, portanto o Reino Unido lhes parecia um porto relativamente seguro (como se só existissem três países no planeta para investir). Em vez da constante paranoia conservadora sobre uma revolta no mercado de títulos, finalmente haveria pessoas no comando dispostas a fazer empréstimos para gastar (logo em seguida aconteceu uma revolta no mercado de bônus). “O Reino Unido está de volta, e o mundo quer um pedaço dele” foi uma das manchetes que perderam validade tão rápido como o leite.
Animador, certo. Hoje sabemos que a produção britânica encolheu em janeiro. E isso antes de que os aumentos de impostos e as regulamentações sobre empregadores propostos pelo governo se tornassem lei. Como sempre, pessoas inteligentes deixam que sua aversão justificável aos conservadores se converta em uma ingenuidade espantosa a respeito de seus oponentes. Isso não teria importância a não ser pelo fato de que os problemas do Reino Unido são os mesmos da Europa, mas em miniatura: crescimento insuficiente e, portanto, receita de impostos insuficiente e, portanto, gastos com defesa insuficientes, ou ao menos insuficientes sem sacrifícios em outras partes, para os quais não há apoio claro da opinião pública.
Talvez, então, devêssemos deixar para outra hora a ideia de que, como disse uma autoridade nada presciente durante as crises dos Bálcãs nos anos 90, “este é o momento da Europa”. Nos últimos tempos, uma nota triunfal começa a aparecer, sugerindo que a traição do presidente dos EUA, Donald Trump, está provando ser o melhor que poderia ocorrer ao continente. E isso se baseia em quê?
A Alemanha é séria. Esta semana seu Parlamento votou a favor de créditos teoricamente ilimitados para o país se rearmar. Mas os compromissos com a área da defesa em outros países têm um financiamento mais vago. O premiê da Espanha não cortará nem um “único centavo” dos gastos sociais. O Partido Trabalhista se debate a respeito de reformas de benefícios que não economizarão 5 bilhões de libras por ano até o fim da década. A disposição dos cidadãos de se privarem do consumo pessoal ou do bem-estar social em troca de reforçar a área da defesa ainda não foi testada, na melhor das hipóteses. Um momento de virada histórico só é um momento devirada histórico se a opinião pública aceitá-lo.
E a questão financeira nem é a mais difícil com que a Europa se defronta. Um consenso para garantir mais gastos com a defesa tem apenas um valor limitado se não houver um consenso para mobilizar forças de fato. Não há nada desse tipo. Londres faz alusão a um “número significativo” de países dispostos a enviar tropas à Ucrânia.
Que países? Quantos soldados de cada um? Sob quais regras de engajamento? Se a Rússia não aceitar tropas de países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, aliança militar ocidental) na Ucrânia, seja como forças da Otan ou não, a Europa insistirá nisso? Ao lado dessas questões, que o continente não dispõe de anos para responder, a questão do financiamento é quase uma brincadeira.
Eu me pergunto se estes meses serão lembrados não como o momento em que a Europa se uniu, mas como o momento em que sua cisão entre norte e sul se tornou o fato central da política do continente. A premiê da Itália, Giorgia Meloni, que é pró-Ucrânia o suficiente para uma populista italiana, descarta a ideia de enviar tropas para lá. A Espanha quer que os gastos com defesa incluam seus investimentos em cibernética e clima, porque a Rússia dificilmente “levará suas tropas através dos Pirineus” (ou através do Canal da Mancha, aposto, mas o Reino Unido ainda leva o poder econômico e militar europeu a sério).
Não há nenhum problema em falar sobre a Europa como uma potência militar com desempenho abaixo do possível, capaz de convocar mais pessoas do que os 340 milhões dos EUA, mas o sul da Europa não é uma parte pequena dessa população.
À exceção da Polônia, os países que mais gastam em defesa como parcela da renda estão entre os menores do continente, como a Letônia. Mesmo que a Alemanha se junte a eles a tempo, o efetivo em potencial da Europa começa a parecer menos impressionante sem a parte do Mediterrâneo. E isso não leva em conta a perspectiva de Berlim decidir que o envio de tropas para o leste é uma carga histórica pesada demais para suportar.
Este mês, um gráfico de analistas da S&P Global Ratings chegou às minhas mãos e justificou o cínico que tenho em mim. O eixo x é a distância de uma capital até Moscou em quilômetros. O eixo y são seus gastos com defesa como uma parcela da produção nacional. Com algumas exceções – muito bem, Grécia – há uma relação inversa entre os dois, em que o sul bem protegido da Europa gasta o menos que pode e o nordeste mais exposto gasta bem acima da marca da Otan, de 2% do Produto Interno Bruto (PIB). O que agrava esse problema são suas respectivas populações. Portugal, um dos países com menor gasto em defesa, tem mais habitantes do que os três países bálticos juntos. A Espanha é maior que a Polônia. Se as percepções sobre perigo e contribuições para a área da defesa divergirem (mais ou menos) de cada lado do paralelo 45, isso terá importância.
Não há nada de vergonhoso em procurar por esperança, mesmo uma falsa esperança. Mas existe o otimismo, e existe a distorção dele para negar a realidade. A versão americana disso é a atribuição de um pensamento estratégico a cada reflexo e resmungo de Trump.
A versão europeia? Falar de maneira prematura sobre um continente unificado e sério: e ainda melhor por ser a criação não intencional de um presidente dos EUA que o detesta. Não sabemos do que os cidadãos europeus estão dispostos a abrir mão para assegurar o rearmamento. Sabemos menos ainda quais deles portarão essas armas. Até que isso mude, a metáfora de um gigante que começa a se mexer após um sono demasiado longo é imperfeita. O continente está meio acordado, com olhos turvos, talvez ainda com a esperança de ignorar o alarme.