Guerra entre Israel e Hamas deve ser travada “de olho no que virá depois”

Um paradoxo da guerra é ela ser capaz de abrir caminho, após o sofrimento trágico, ao tipo de realinhamento fundamental capaz de ocasionar uma paz duradoura — o que era evidente o presidente Franklin Roosevelt em sua reunião em Casablanca, em janeiro de 1943, para planejar estratégia para um conflito cujo selvagem derramamento de sangue estava apenas começando.

Roosevelt disse ao primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, que para eliminar o poder de seus adversários, os Aliados deviam buscar sua rendição incondicional. “Não significa a destruição da população da Alemanha, da Itália ou do Japão”, afirmou Roosevelt, “mas significa a destruição de (suas) filosofias … baseadas na conquista e na opressão”.

O primeiro-ministro Binyamin Netanyahu está num momento similar conforme os tanques israelenses rumam para Gaza. Ele exigiu, na prática, a rendição incondicional do Hamas e o fim do controle terrorista do populoso enclave. “Nós o esmagaremos e destruiremos”, disse ele aos israelenses na noite da quarta-feira. Ele pretende tornar impossível para o Hamas praticar esses horrores novamente.

Mas Netanyahu deve ser sábio, como foi Roosevelt, para travar a guerra de uma maneira que permita uma paz estável após a derrota de seu adversário. Se ele esperar o conflito acabar para pensar no “dia seguinte”, poderá ser tarde demais. Se conduzir uma guerra que puna os civis palestinos em vez do Hamas, ele poderá perder o apoio global e minar sua missão.

Netanyahu tem apenas uma carta, que, se jogar bem, seria capaz de reordenar o Oriente Médio: a crescente disposição da Arábia Saudita, a potência árabe dominante, de formar uma parceria aberta com Israel — contanto que os israelenses busquem uma paz estável e duradoura com os palestinos.

É um fato histórico que oportunidades para paz no Oriente Médio seguem-se a conflitos. À Guerra do Yom Kippur, de 1973, foi um choque estratégico muito parecido com o ataque do Hamas no 7 de outubro, seguiu-se uma viagem do presidente egípcio Anwar Sadat a Jerusalém e, eventualmente, os acordos de paz de Camp David. Os Acordos de Oslo, de 1993, que ocasionaram a criação da Autoridade Palestina, foram promovidos pelo primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin após a carnificina da Primeira Intifada.

“Quem agirá como Sadat trazendo os palestinos sob sua asa e conduzindo-os para a paz? Meu candidato é o príncipe-herdeiro Mohammed bin Salman”, afirmou Martin Indyk, que trabalhou para os presidentes Bill Clinton e Barack Obama e pode ser o veterano americano mais sábio em relação ao processo de paz. Indyk acredita que MBS, como é conhecido o príncipe-herdeiro, trabalhou para construir uma estrutura de segurança para sua massiva “Visão 2030″, um plano de investimento na Arábia Saudita com base em um tratado de defesa com os Estados Unidos e um acordo estratégico de paz com Israel. “Mas o Hamas, apoiado pelo Irã, abriu um rombo na capacidade de dissuasão de Israel e fez renascer a ideia de derrotar os israelenses pela força”, afirmou Indyk. Ele pensa que isso também ameaça os líderes árabes que fizeram paz com Israel.

O comportamento normal dos sauditas seria observar ao longe, mas Indyk considera que MBS pode ter muito em jogo desta vez. Ele imagina que, na devastação que se seguirá à guerra em Gaza, o príncipe-herdeiro, em coordenação outros líderes árabes pró-Ocidente, poderia convidar Netanyahu e líderes palestinos a Riad para uma “cúpula pela paz” que estabeleceria um novo caminho para um acordo árabe-israelense.

Esta visão de um concerto saudita-israelense poderia parecer um sonho irrealista por apostar num líder saudita com um passado obscuro. Juntamente com meus colegas do Post, eu culpo MBS pelo assassinato do colunista colaborador Jamal Khashoggi em Istambul, em 2018. Mas sauditas que conhecem bem o príncipe saudita dizem-me que ele está pronto para políticas transformadoras, a não ser que Israel trave uma guerra desenfreada que despedace qualquer chance de reconciliação.

“Nós temos uma oportunidade que não vemos em 20 anos de criar algo diferente”, afirmou em entrevista o colunista saudita Abdulrahman al-Rashed, diretor do conselho editorial da Al-Arabiya, a principal rede de TV saudita, na quarta-feira.

Rashed discorreu a respeito de como a mudança deveria evoluir: “Nós temos um ordenamento na Autoridade Palestina, criado com os Acordos de Oslo, com instituições jurídicas. Os EUA, a União Europeia e a Liga Árabe reconhecem a AP”. Uma autoridade revitalizada, apoiada pelos sauditas e outros países árabes importantes, seria capaz de expurgar a corrupção e a incompetência que a enfraquecem desde seu nascimento. Com dinheiro e apoio árabe — e uma nova liderança — a AP poderia talvez reconstruir Gaza gradualmente.

“A Autoridade Palestina precisa ser reconstruída, precisa de uma liderança jovem e dinâmica. Eu creio que a Arábia Saudita e MBS apoiariam isso”, disse-me em entrevista Ali Shihabi, um proeminente apoiador de MBS. Mas ele também alertou: “Se quiserem um parceiro palestino capaz de gerar uma solução pacífica, os israelenses terão de dar poder a esse parceiro.”

O rei da JordâniaAbdullah II, vinha trabalhando proximamente com os EUA desde o verão (Hemisfério Norte) para preparar a Autoridade Palestina para a era que se seguirá à presidência de Mahmoud Abbas, que, aos 87 anos, é amplamente considerado ineficaz. O monarca jordaniano temia que o Hamas viesse ganhando terreno em Gaza e nas Cisjordânia e instava a mudança para que os extremistas não explorassem a frustração popular. Mas ela não veio a tempo. “Agora nos temos de pensar no ‘dia seguinte’, quando as armas silenciarem”, afirmou uma graduada autoridade jordaniana.

O temor na região é de que, conforme vejam baixas civis, os árabes sintam uma fúria similar à que os israelenses sentiram após o massacre de civis perpetrado pelos terroristas do Hamas. “Nós precisamos reverter isso”, afirmou em entrevista o ministro das Relações Exteriores da Jordânia, Ayman Safadi, na quinta-feira. “Qualquer pensamento novo sobre a região deve reconhecer que, enquanto não resolvermos o problema palestino, a paz duradoura será uma ilusão.”

O ex-ministro de Relações Exteriores dos Emirados Árabes Unidos Anwar Gargash tem foco na necessidade de minimizar massacres horripilantes de civis, como o de 7 de outubro. “Os EAU enfatizaram que civis não devem ser alvo de nenhum lado, não importa como ele se sinta a respeito de direitos históricos ou injustiças”, disse-me ele, na quinta-feira.

Os EUA conseguiram até aqui operar o difícil truque de manter a fé tanto de Israel, cuja dor o presidente Joe Biden pareceu compartilhar visceralmente em seu discurso televisionado da semana passada, quanto de importantes aliados árabes. O secretário de Estado americano, Antony Blinken, circulou por toda a região na semana passada para reunir-se com graduadas autoridades em Israel, Jordânia, Catar, Bahrein, Arábia Saudita, EAU e Egito.

Em Israel, na quinta-feira, Blinken ofereceu um esboço de sua visão para o Oriente Médio pós-conflito: “uma região que se une, integrada, com relações normalizadas entre seus países, pessoas trabalhando com propósitos comuns em prol de benefícios comuns, mais pacífica, mais estável”.

Shihabi cita um provérbio árabe para ilustrar o quanto depende do bom julgamento de Israel e dos EUA na administração desta crise cada vez mais obscura: “O erro de uma pessoa inteligente equivale aos erros de 10 idiotas”.

Conforme Israel persegue a destruição do Hamas, os próximos dias trarão mais cenas de violência e sofrimento. Muitos árabes também gostariam de ver o Hamas derrotado, mas esperam que Netanyahu seja sábio em relação à maneira que usa a força — com um olho, sempre, no que vem depois.

https://www.estadao.com.br/internacional/guerra-de-israel-contra-o-hamas-deve-ser-travada-de-olho-no-que-vira-depois-leia-a-analise/

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