Durante a maior parte de sua vida, Josepha Albrecht conheceu apenas uma única líder. Não, ela não vive na Coreia do Norte ou na Rússia de Vladimir Putin. É uma adolescente que mora na próspera e democrática Alemanha.
A estudante de 17 anos ainda era bebê quando Angela Merkel se tornou a primeira mulher a ser premiê na Alemanha, em novembro 2005. Ela cresceu vendo Merkel se estabelecer como a estadista de maior destaque na Europa, um rochedo de estabilidade num mundo convulsionado por crises econômicas, populismo político e ruptura de velhas alianças.
“Simplesmente maluco”, é como Albrecht descreve o longo reinado de Merkel. “Em termos democráticos, é bem chocante.” Para Imanuel Röver, 16 anos, Merkel tem sido uma presença constante em toda sua vida. “Até onde consigo lembrar ela sempre esteve lá.”
Isso está para mudar. Depois da eleição geral deste mês, Merkel renunciará como líder da Alemanha, marcando o fim de uma era e um ponto de inflexão crucial na história do país no pós-guerra. Os jovens da Geração Merkel são parte de seu legado. Eles cresceram numa Alemanha que, sob sua liderança, se tornou mais rica, mais diversa, mais poderosa economicamente e mais engajada no mundo.
Albrecht e Röver são dois dos vários jovens alemães de pontos de vista políticos variados que nasceram ou se tornaram adultos nos últimos 20 anos e com os quais o “Financial Times” conversou. Muitos mostraram enorme respeito pela mulher que guiou a Alemanha em incontáveis crises. Eles a aplaudem como modelo para as mulheres jovens que querem mudar o mundo.
Wiebke Winter, advogada de 25 anos, da cidade portuária de Bremen, é uma estrela em ascensão no partido de Merkel, a União Democrata-Cristã (CDU). O que outrora era algo abstrato – uma garota sonhar em governar a Alemanha – agora é perfeitamente realista, diz ela. “Há crianças nascidas hoje que não têm nem ideia do que significa ter um homem como premiê.”
Mas os últimos meses lançaram uma grande sombra sobre o legado de Merkel. Uma série de problemas – a pandemia da covid-19, desastres naturais, a tomada do Afeganistão pelo Talibã – levantou dúvidas sobre a capacidade alemã de reagir as crises. Seu governo foi criticado por não ter previsto a queda de Cabul e removido representantes no país para locais seguros. Foi acusado de não alertar devidamente sobre as enchentes deste verão europeu. Paralelamente, a pandemia tem revelado que a Alemanha, é lenta, demasiado burocrática e, em muitos aspectos, presa a um passado analógico.
“Você tem a sensação de que, pelo menos em alguns aspectos, o Estado está falhando”, diz Röver, sentimento compartilhados por muitos alemães. Robin Alexander, um dos principais jornalistas políticos do país, escreveu recentemente um livro sobre o mandato final de Merkel intitulado “The Decline of Power” (o declínio de poder).
“Declínio” é um conceito relativo, cujo grau de profundidade depende da escala de tempo em questão. A Alemanha da geração Merkel tem sido definida pela unidade, estabilidade e crescimento – qualidades que estiveram em falta durante boa parte de sua tumultuada história no século 20.
Agora, esta geração, cuja visão de mundo foi moldada pela constância de uma única líder, se depara com uma série de desafios à sua frente. Qualquer complacência quanto ao momento em que a Alemanha se encontra, aproximando-se das eleições, foi varrida pelas enchentes que mataram mais de 180 pessoas em julho. “Elas são uma mostra do que está por vir se não agirmos”, diz Albrecht, que faz parte do movimento ambientalista Sextas-Feiras pelo Futuro. O desastre, que especialistas dizem ter sido exacerbado pelas mudanças climáticas, atiçou ainda mais os nervos na política alemã e alimentou tensões que podem definir a próxima era da Geração Merkel.
Quando Merkel chegou ao poder, o iPhone ainda estava por ser lançado e a petrolífera ExxonMobil ainda era a empresa americana de maior valor de mercado (levaria seis anos para ser superada pela Apple). O mundo todo parecia bem diferente. George W. Bush ocupava a Casa Branca e Tony Blair era o premiê britânico. A Alemanha estava rodeada de amigos e aliados sólidos, a União Europeia estava unida e forte e a democracia liberal parecia bem encaminhada.
Mas logo depois uma série de eventos sacudiu o consenso da Europa do pós-guerra. O choque provocado pela quebra do Lehman Brothers, crise da dívida soberana da UE e chegada de milhões de refugiados nas costas do continente em 2015 e 2016 deixaram as instituições europeias fortemente pressionadas. Uma tropa de novos líderes populistas estimulou sentimentos nacionalistas há muito adormecidos e colocou todo o projeto europeu em dúvida.
A UE sobreviveu a essas provas, em grande medida, graças a Merkel – à sua habilidade para obter concessões e construir consensos, e disposição para negociar noite adentro para neutralizar crises. “Havia tantas forças centrífugas na Europa que [o continente] correu realmente o risco de desmoronar”, diz Andrea Römmele, da Hertie School, em Berlim. “Mas ela manteve a UE unida, e não se pode subestimar a importância disso.”
A turbulência não acabou aí. Em 2016, uma mulher que se via como parte de uma rede mundial de líderes ocidentais, unidos por valores comuns e um compromisso conjunto com a ordem mundial liberal de repente se viu só. Com o Brexit no Reino Unido e a eleição de Donald Trump como presidente dos EUA, Merkel se tornou, nas palavras de um jornal, a “última defensora” do Ocidente liberal.
Ela mesma descreveu o apelido como “grotesco”, mas ele colou. “Merkel se tornou a Madre Teresa da política mundial”, diz Josef Janning, do Conselho Alemão de Relações Exteriores. “Como alguém para quem o mais importante era negociar, ouvir atentamente o interlocutor e conciliar seus pontos de vista, ela era a antítese de Trump.”
Enquanto Merkel se prepara para deixar o cargo, alguns se perguntam se os novos tempos não exigem um tipo diferente de líder. “A negociação tenaz e paciente – a abordagem de Merkel – não trará as mudanças que são necessárias na política sobre o clima. Para isso, são necessárias decisões corajosas e polêmicas”, diz Janning. “Merkel sempre acreditou que só seria possível fazer as coisas se todos os protagonistas importantes estiverem a bordo. E isso simplesmente não se ajusta à situação de hoje.”
Rufus Franzen, estudante de 17 anos que faz parte do conselho de alunos de Berlim, um órgão representativo dos alunos das escolas locais, tem a mesma sensação. Para ele, Merkel sempre pareceu “essa senhora sábia que sempre sabia exatamente quando agir, raramente era impulsiva e nunca cometia nenhum erro”. Mas hoje as pessoas anseiam por mais “assertividade… muitas pessoas acham que Merkel não é drástica o suficiente em suas políticas e querem alguém com mais determinação, especialmente quando se trata das questões climáticas”.
Os limites da moderação de Merkel foram percebidos em 2019, quando ela apresentou a lei de proteção contras as mudanças climáticas, a peça central de seus esforços para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Seus críticos a consideraram muito pouco ambiciosa. A lei estabelecia, por exemplo, o preço do carbono no setor de transportes em apenas € 10 por tonelada, valor que os ambientalistas classificaram de “ridiculamente baixo”. A reação de Merkel foi rebater que “a política tem a ver com o que é possível”.
Isso foi explorado por adversários como Annalena Barbock, de 40 anos, candidata do Partido Verde a premiê. Em junho, ela disse que a política não se trata apenas do que é possível, e sim “o que podemos tornar possível”.
Albrecht, a ativista do clima, diz que quando criança, tinha uma visão positiva de Merkel. Mas depois de ingressar na organização juvenil do Partido Verde aos 14 anos, essa visão ficou turva. Não importa que, como ministra do Meio Ambiente nos anos 90, Merkel estivesse na vanguarda dos esforços para combater as mudanças climáticas. Que ela tenha decretado a eliminação gradual da energia nuclear, ampliado bastante o uso das energias renováveis e prometido fechar todas as poluentes usinas e minas de linhita até 2038. Para a geração de Albrecht, nada disso foi suficiente. “Ela está no governo há muito tempo e no entanto não tem feito muita coisa pelo clima, pelo menos nos últimos anos”, diz ela.
Nada simbolizou melhor esse novo temperamento do que o famoso vídeo de 55 minutos de Rezo, YouTuber de 29 anos, acusando o CDU de Merkel de “destruir nosso futuro”. O vídeo de 2019 soma 19 milhões de visualizações.
A opinião convicta dos jovens em relação à questão climática é um dos motivos da ascensão extraordinária dos Verdes alemães. Depois de conseguir só 8,9% dos votos na eleição anterior, em 2017, pesquisas agora apontam que eles estão com 18% e é grande a expectativa de que eles farão parte do próximo governo. A sensibilidade verde ganhou popularidade.
Apesar de sua reputação de excessivamente cautelosa, Merkel por vezes agiu com ousadia, frequentemente desafiando seu próprio partido e a opinião pública. Em 2011, quando um terremoto seguido de tsunami desencadearam um colapso triplo da usina nuclear de Fukushima, no Japão, ele prontamente anunciou que a Alemanha iria fechar todas as suas usinas nucleares até 2022. Quatro anos depois, no auge da crise europeia dos refugiados, ela permitiu a entrada de mais de um milhão de migrantes na Alemanha.
Esta última decisão provocou ondas de choque na política do país. Mas para muitos alemães, ela foi uma chance de apresentar ao mundo uma imagem diferente de uma nação que aprendeu as lições de seu passado nazista e que agora estava determinada a demonstrar generosidade e bondade para com os necessitados. Milhares de pessoas reuniram-se na estação central de Munique para dar boas- vindas aos recém-chegados com brinquedos, alimentos e água mineral.
Muitos membros da CDU ficaram furiosos, mas a premiê não se arrependeu. “Preciso ser honesta, se começarmos a ter de pedir desculpas por mostrar uma face amiga em emergências, então este não é o meu país”, disse ela em setembro de 2015. Seu bordão na época – “Nós podemos fazer isso” – tornou-se o slogan definidor da crise.
Um dos que foram diretamente afetados foi Mohamed Sahly, um adolescente de 13 anos de Damasco, na Síria, que chegou à Alemanha com seus pais, duas irmãs e um irmão no terceiro trimestre de 2015. Ele também é um membro da Geração Merkel. “Sou muito grato a ela pelo que fez”, diz ele. “Todos os políticos deveriam seguir o exemplo dela.”
Já Eric Engelhardt, um estudante de Tecnologia da Informação de 19 anos da cidade de Sonneberg, no leste da Alemanha, vê a decisão tomada em 2015 por Merkel como um erro desastroso. Engelhardt é membro do partido Alternativa para a Alemanha (AfD), que em 2017 promoveu uma grande reação contra a política de imigração de Merkel, para se tornar o partido de extrema direita de maior sucesso na história da Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. O AfD tem a maior bancada de oposição no parlamento (Bundestag) e está representado em todas as 16 assembleias regionais da Alemanha.
O AfD faz parte do legado de Merkel. Sua CDU antes se orgulhava de ser capaz de oferecer um lar político até mesmo aos conservadores mais linha dura. Mas seu liberalismo expôs o flanco direito da CDU, criando um espaço para um partido iniciante com posições abertamente nacionalistas e xenofóbicas. Muitos democratas-cristãos desertaram para o AfD.
Engelhardt, que faz parte do conselho executive da Junge Alternative, a ala jovem do AfD, diz que o legado de Merkel não é apenas a imigração excessiva, é também o aumento da desigualdade.
O problema é particularmente grave nos antigos territórios da Alemanha Oriental, onde, segundo ele, 30 anos depois da reunificação os salários continuam mais baixos do que no lado ocidental. Ele também culpa Merkel por levar a Alemanha “muito para a esquerda” nas últimas duas décadas.
De fato a Alemanha se tornou mais liberal com Merkel, embora se possa argumentar que isso se deve mais aos social-democratas de centro-esquerda, com quem ela governou por 12 dos últimos 16 anos em “grandes coalizões”. Com ela, o país aboliu o serviço militar compulsório, implementou um salário mínimo, ampliou a licença parental, aumentou maciçamente a oferta de creches e permitiu o casamento gay. A Alemanha tornou-se mais aberta às influências estrangeiras e a visões alternativas da sociedade e da família.
Muitos jovens alemães estavam um pouco indiferentes a Merkel no início do seu quarto mandato, em 2018. Ela estava sempre presente no noticiário da TV, mas, em segundo plano. “Ela era a Mutti [a mamãe]”, diz o estudante Franzen, de 17 anos, de Berlim.
Isso mudou com o advento da pandemia, quando Merkel passou a ocupar o centro da cena, voltando diretamente à consciência das pessoas. No começo do surto de covid-19, no início de 2020, ela foi rápida em impor um lockdown e foi à TV para um pronunciamento à nação, em que conclamou seus compatriotas a demonstrar solidariedade uns com os outros por meio da redução de seus contatos a um nível mínimo.
Foi um discurso contido, mas foi suavizado com um toque singularmente pessoal, na medida em que ela citou sua criação na Alemanha Oriental comunista. “Para uma pessoa como eu, para quem a liberdade de movimentos foi um direito conquistado a duras penas, essas restrições só podem ser justificadas por sua necessidade absoluta”, disse ela. Merkel, doutora em química quântica, ouviu os cientistas e seguiu suas orientações. “Os jovens valorizaram realmente sua liderança serena, clara”, diz Simon Schnetzer, pesquisador que estuda a atitude dos jovens alemães.
O primeiro lockdown funcionou, e a Alemanha parecia ter contido a pandemia. Mas, após o terceiro trimestre, o número de novos casos começou a aumentar. Merkel pressionou por outra suspensão das atividades, mas os 16 dirigentes regionais da Alemanha se opuseram. Eles finalmente cederam em dezembro de 2020, tarde demais para deter o crescimento exponencial dos novos casos. “A coisa escapou das nossas mãos”, disse Merkel a cúpula da CDU em janeiro. As coisas pioraram com o início chocantemente lento da vacinação no país, embora uma das vacinas de maior eficácia tenha sido inventada na Alemanha.
Nesse ínterim, os jovens foram duramente atingidos pela pandemia. Suas escolas e universidades foram obrigadas a fechar, enquanto os escritórios e fábricas continuaram abertos. O ensino on-line durante o lockdown virou piada nacional em decorrência da baixa qualidade da rede digital da Alemanha, enquanto plataformas fáceis de usar, como a Zoom, ficaram restritas devido a preocupações ligadas à proteção de dados.
Ao falar dos desafios com que as crianças se defrontavam durante a pandemia, Merkel muitas vezes não conseguiu encontrar o tom certo. Perguntada sobre salas de aula congelantes no inverno, quando as janelas eram escancaradas para evitar a propagação de covid-19, ela disse que as crianças deveriam “fazer pequenas flexões dos joelhos ou bater as mãos” para se manterem aquecidas. O programa de TV satírico “Heute Show” a chamou de “Angi Aeróbica”.
Os jovens ficaram ainda mais furiosos quando veio à tona, no segundo trimestre deste ano, que vários parlamentares democratas-cristãos tinham recebido enormes comissões por contratos para a compra de máscaras de proteção contra o coronavírus. Essa frustração está só se fortalecendo entre os jovens, com alguns alertando para o acirramento das tensões intergeracionais. Muitas crianças alemãs ainda sofrem de cicatrizes mentais causadas pelos longos meses de lockdown e vivem com medo das escolas serem fechadas novamente. “As crianças dizem: os políticos nunca nos ouvem, não demonstram, absolutamente, a menor consideração por nós”, diz Schnetzer. “E isso pode levar a conflitos.”
Angela Merkel sempre relutou em falar sobre o conjunto de seu legado. “Não penso no meu papel na história. Faço o meu trabalho”, disse ela certa vez ao “FT”. Mas em discurso de campanha da CDU no mês passado ela listou o que considerava suas maiores realizações. Redução do desemprego à metade. Recuperação das finanças públicas. Lançamento da “Energiewende”, a histórica mudança da Alemanha da energia nuclear e de combustíveis fósseis para matrizes renováveis. E a salvação do euro.
Embora os jovens sejam ambíguos, um grande número de eleitores alemães ficará com saudades dela. “Ela deixará um vácuo atrás de si”, diz Manfred Güllner, diretor da agência de pesquisas eleitorais Forsa. “As pessoas estão se sentindo muito inseguras.” Por 16 anos ela “deu às pessoas uma sensação de segurança… de estabilidade e de continuidade”, acrescenta. “As pessoas sentiam que ela estava cuidando delas, garantindo que todas aquelas crises não afetassem demais suas vidas diárias. Ela era como uma rede de segurança.”
Armin Laschet, o candidato da CDU a premiê, tenta convencer os eleitores de que é o herdeiro natural de Merkel. “Mas as pessoas não acreditam nisso, porque simplesmente não o consideram um político tão eficiente quanto ela”, diz Güllner. A CDU, que atualmente amarga o índice de 22% de intenção de voto nas pesquisas, “corre o risco de perder muitos eleitores de Merkel”.
Por seu lado, Merkel, que disse a um entrevistador 23 anos atrás que não queria ser “um ferro-velho semimorto” quando deixasse a política, verá seu desejo atendido, ao que parece. Ela terá só 67 anos de idade quando se aposentar como premiê. Todo um novo capítulo se estende à sua frente.
Quando ela deixar o cargo, no fim do ano, estará fazendo história, ao tornar-se a primeira pessoa a ocupar o posto de premiê a abrir mão do poder por livre e espontânea vontade, e no momento escolhido. Seu predecessor Konrad Adenauer foi obrigado pelo seu partido a se aposentar. Helmut Kohl, o mentor da reunificação alemã, foi derrotado nas eleições e deixou o poder após 16 anos.
Parte da juventude alemã ficará triste com a partida de Merkel. Outros estão ansiosos pela mudança no mais alto escalão. “Toda vez que aparecia um novo problema, a gente sempre meio que sabia qual seria a reação de Merkel. Era, de alguma forma, previsível”, diz Imanuel Röver. O futuro será totalmente diferente disso.