Explosão se soma à tragédia que ocorre no Líbano

Nos escombros retorcidos do porto de Beirute e arredores, o número oficial de mortos já supera mais de uma centena, e o de feridos está bem além de 5 mil. Muitos mais podem estar presos entre os destroços. A explosão de terça-feira trouxe mais sofrimento a um país que nas últimas décadas já sofreu bastante. Ela acrescentou uma tragédia humana às crises monetária, de dívida, fiscal e bancária que levaram a falência em massa de empresas e perda de empregos antes mesmo do início da pandemia de covid-19. Embora acidentes possam ocorrer até nos países mais bem administrados, as circunstâncias deste desastre parecem refletir o tipo de má governança, corrupção e incompetência que efetivamente arruinaram o país. 

Muitos libaneses verão a tragédia como mais uma prova dos erros da classe dominante. As autoridades estarão sob pressão para explicar como 2.750 toneladas do explosivo nitrato de amônio – para todos os efeitos uma bomba gigante à espera de explodir – puderam ser guardadas por seis anos em um armazém perto do coração de Beirute. O perigo desse estoque já fora levado aos tribunais várias vezes, sem resultado. 

O porto da capital e outras instalações de infraestrutura e serviços públicos, de aeroportos à rede de energia elétrica, frequentemente são usados como ferramentas de favoritismo pelas facções que têm governado o Líbano num sistema de compartilhamento do poder entre os diferentes grupos religiosos desde o fim da guerra civil de 1975-1990. Esse arranjo ajudou a preservar a paz interna, mas consolidou a posição dos chefes militares e das dinastias políticas e estimulou o nepotismo e o clientelismo. 

Esse modelo de governança, que já tinha levado o país para perto da ruína financeira, esvaziou as instituições e deixou a economia à beira do desastre. O Líbano acumula perdas em seu banco central que hoje estão estimadas em quase US$ 50 bilhões – quase o tamanho total da economia nacional antes da crise – enquanto o setor bancário registra perdas de US$ 83 bilhões com empréstimos ao Estado e a empresas ligadas a ele. Em março, pela primeira vez, o Líbano suspendeu pagamentos de sua dívida externa, de US$ 90 bilhões. 

A economia começou a parar antes mesmo da onda de protestos populares que derrubou o governo, em outubro passado. Um longo confinamento por causa da pandemia aprofundou a crise. A moeda perdeu 80% de seu valor em comparação com a taxa oficial atrelada ao dólar, o que levou ao aumento vertiginoso dos preços dos alimentos em um país que depende de importá-los. A devastação do porto, por onde passam três quartos das importações, vai exacerbar esses problemas, enquanto os custos de reconstrução chegarão a bilhões de dólares. 

Enquanto isso, o faccionalismo no Líbano bloqueia qualquer acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre o pacote de socorro financeiro de US$ 10 bilhões pedido por Beirute em maio. A disputa entre o governo e o BC sobre a extensão das perdas impediu o FMI de obter respostas claras sobre como resolver os problemas. 

A comunidade internacional, acertadamente, correu para oferecer ajuda humanitária para um país que fica no centro da região mais volátil do mundo. A explosão corre o risco de desestabilizar um país que conseguiu se manter unido em meio às turbulências no Iraque, na Síria e na Líbia, mesmo depois de receber cerca de 1,5 milhão de refugiados sírios. Mas os países e instituições estrangeiros também precisam encontrar uma maneira de, apesar das divisões em Beirute, fornecer a 

assistência financeira de que o Líbano necessita para resolver seus problemas de dívida e balanço de pagamentos. 

Contudo, um avanço concreto também exigirá profundas mudanças internas. Até que os chefes militares dos diferentes grupos religiosos e os remanescentes da guerra civil saiam de cena e permitam que os muitos funcionários e tecnocratas capacitados que ainda restam assumam o controle da situação, é improvável que a tragédia do Líbano seja mitigada (Financial Times). 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/08/06/explosao-se-soma-a-tragedia-que-ocorre-no-libano.ghtml

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